quinta-feira, 30 de julho de 2015

ASSIM FALAVA HEMINGWAY

Quando for velho quero ser um velho sábio, que não seja chato”, disse ele, fazendo uma pausa enquanto o garçom colocava diante dele um prato de aspargos e alcachofra e servia o Tavel. Hemingway provou o vinho e assentiu com a cabeça para o garçom. “Gostaria de ver todos os novos lutadores, cavalos, balés, ciclistas, damas, toureiros, pintores, aviões, filhos da puta, personagens de cafés, grandes putas internacionais, restaurantes, anos de vinho, notícias, e nunca mais ter de escrever uma linha sobre nada disso”, disse ele. “Gostaria de escrever muitas cartas para meus amigos, e receber cartas de volta. Gostaria de fazer amor bem até os 85, como Clemenceau. E o que gostaria de ser não é Bernie Baruch. Não sentaria em bancos de praça, apesar de poder caminhar no parque de vez em quando para dar de comer aos pombos, e também não teria uma barba comprida, para que houvesse um velho que não fosse parecido com Shaw”. Ele parou e passou as costas da mão na barba, olhando para o salão. “Nunca conheci o senhor Shaw”, disse ele. “Também nunca fui às cataratas do Niágara. De qualquer modo, gostaria de correr de charrete. Não dá para ser um dos melhores nesse esporte se você não tiver mais de 75 anos. Aí eu poderia arrumar um time jovem, talvez, como o senhor Mach. Só que eu não sinalizaria com um programa – para quebrar o padrão. Não decidi com o que sinalizaria. E, quando tudo se acabar, serei o cadáver mais lindo desde Pretty Boy Floyd. Só os idiotas se preocupam em salvar a alma. Quem diabos deveria se preocupar em salvar a alma quando o dever do homem é perdê-la de forma inteligente, da maneira como você venderia uma posição que está defendendo, se não consegue mantê-la, tão caro quanto possível, tentando fazer dessa posição a mais cara jamais vendida. Não é difícil morrer.” Ele abriu a boca e riu, primeiro sem som, depois alto. “Chega de preocupações”, disse ele. Com a mão, ele pegou um aspargo grande e olhou para ele sem entusiasmo. “É preciso ser um homem muito bom para fazer sentido quando se está morrendo”, disse ele.

sábado, 25 de julho de 2015

CONTRADIÇÕES

Cada período histórico elabora uma visão particular de mundo. Quando se trata de algo formal, sistemático e que estrutura a própria sociedade, podemos chamar essa visão de ideologia. As manifestações culturais e artísticas escapam à rigidez dos enquadramentos ideológicos. No entanto, artistas e intelectuais compartilham formas e métodos de captar os movimentos da atualidade, mesmo ao investigar o passado. Raymond Williams chamou de “estrutura de sentimento” esse modo dinâmico de perceber o mundo pelas artes. O conceito de Williams guarda semelhanças importantes com a noção de “consciência” de Antonio Candido, formulada no ensaio “Literatura e subdesenvolvimento”.
Na atual globalização, o Brasil mantém firme na ideologia da modernização conservadora, concebida no século XIX e que sobrevive aos mais distintos ocupantes do poder. Não é o mesmo caminho da modernidade, com emancipação e igualdade. Os brasileiros ainda tentam superar, pelo liberalismo, o que pensam ser o atraso nacional. Para Raymundo Faoro, a modernização é a grande questão nacional do Brasil. O contraponto a essa ideologia aparece nas “estruturas de sentimento” que, por meio das artes, dão uma visão mais apurada da atualidade e captam as oscilações do presente. Movimentos estes que demoram a ser percebidos e aparecem em romances, músicas e filmes.
Antonio Candido identificou três momentos históricos da consciência brasileira. O nascimento do Brasil, após a independência em 1822, possibilitou o surgimento de uma “consciência amena do atraso” para dar suporte à idéia de “país novo”, recém separado de Portugal. Os autores românticos se empenharam em elaborar um passado patriótico e esperançoso em relação ao futuro. A figura do índio predominava em romances e poemas, em detrimento do negro que era proscrito na sociedade imperial e escravista. Era uma base simbólica para criar uma nação sem negros. Na Europa, ocorria movimento similar de criação de representações históricas por meio da literatura.
Nos anos 1920 e 1930, emergiu uma segunda consciência. A literatura regionalista do Nordeste (Graciliano Ramos, Raquel de Queiroz, José Lins do Rego) e o ensaísmo social reconhecem a complexidade do atraso no Brasil. Na visão de Sérgio Buarque de Holanda, tratava-se de conhecer a “herança rural” e o arcaísmo que travam a nação e devem ser superados. Para Gilberto Freyre, a sociedade se desenvolveria pela miscigenação racial, gerando “democracia social”. A aproximação da literatura e do ensaio era grande, a ponto de o autor de Casa Grande & Senzala falar da necessidade de “introspecção proustiana” para quem fosse analisar a família patriarcal brasileira.
Os anos 1950, após a Segunda Guerra Mundial, trouxeram a “consciência dilacerada do subdesenvolvimento”. Trata-se da formulação de uma identidade que rendeu bons frutos na política e nas artes. Autores como Guimarães Rosa e Juan Rulfo ultrapassam o naturalismo do romance social de décadas anteriores e alcançam uma perspectiva latino-americana. Coincidem com as obras regionalistas/universais as grandes interpretações do período. Celso Furtado teorizou o subdesenvolvimento no final daquela década, enfatizando as relações dos países centrais do capitalismo e nações periféricas. Nestas, lançou-se o ideário da possível ultrapassagem do atraso na América Latina.

quarta-feira, 15 de julho de 2015

Lei de proteção cultural ameaça esvaziar museus da Alemanha

Projeto que prevê restrições a comércio internacional de objetos de arte gera pânico no setor. Georg Baselitz retira seus quadros dos museus. Gerhard Richter fala em atentado à liberdade e pode seguir exemplo.Sob fortes críticas, a ministra alemã da Cultura, Monika Grütters, apresentou nesta quarta-feira (15/07), em Berlim, o projeto de uma lei para proteção do patrimônio cultural nacional.
Ainda em forma provisória e sujeita a aprovação pelo gabinete federal, a regulamentação inclui a implementação, na legislação alemã, da diretriz da União Europeia pela defesa do patrimônio cultural de maio de 2014, assim como da convenção das Nações Unidas relativa ao assunto. Segundo Grütters, a meta principal é impedir o êxodo de objetos de arte para fora do país, inclusive colocando os acervos museológicos do país sob "proteção coletiva contra a exportação". No texto se define pela primeira vez, de forma vinculativa, o que constitui "patrimônio cultural nacional" – decisão que atualmente cabe, em primeira linha, a comissões estaduais.
Desde seu anúncio, há algumas semanas, o projeto de lei vem desencadeando atritos entre o governo federal e o setor de comércio de arte. Galeristas, colecionadores, marchands, leiloeiros e artistas acusam Berlim de pretender obstruir seriamente o comércio de arte transnacional.
A ministra da Cultura assegurou que, ao apresentar em Berlim o texto – que ainda passará passar por várias instâncias de controle –, ela quer trazer mais objetividade ao debate. Além disso, teriam sido escutados representantes do setor em todas as fases da discussão da lei. E acrescentou, num adendo mais revelador do que tranquilizador: "Proteção, a meu ver, não significa desapropriação."
Tiro pela culatra
O temor da desapropriação é, justamente, o motivo central da atual avalanche de críticas por parte dos que vivem da arte na Alemanha. O pintor Georg Baselitz foi o primeiro a dar passos concretos diante da aparente ameaça à sua produção artística, exigindo de volta todos os seus quadros emprestados a museus nacionais. As instituições implicadas já estão se preparando para a devolução.
Mayen Beckmann, neta de Max Beckmann (1884-1950), anunciou que igualmente pretende retirar dos museus as obras do artista representante do movimento pós-expressionista Nova Objetividade. A herdeira quer evitar o que classifica como "confisco" do patrimônio familiar.