quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

IRONIA VERSUS ARTE - A BEIRA DO ABISMO

A ironia, à vezes, se volta contra a própria pessoa que a lançou. É clássica a proposta do artista alemão Joseph Beuys, à época do muro de Berlim, em aumentar 5 centímetros sua altura. Por uma questão de proporção, segundo ele, melhorando sua estética.
O muro caiu e com ele as ideologias, mas ninguém reparou que as ideologias nunca andam sobre o muro e continuam pairando sobre nossas consciências, ainda que o neoliberalismo tenha decretado seu fim.
Os mesmos que apontavam o dedo contra o sindicalismo de resultados que apoiava o patrão contra os interesses de classe, são os que estão agora no poder dizendo que a luta está fora de moda. Daí minha dúvida sobre a eficiência da ironia. Não é possível afirmar uma identidade com base em nossa pobreza. Não saberia avaliar as consequências de se aconselhar que se beba Tropicola para quem não pode pagar pela Coca-cola, sob a justificativa de que uma é mais barata que a outra e ainda é nacional, sendo que as duas produzem os mesmos efeitos colaterais.
Ingenuidade globalizada
Achamos curioso e ingênuo o fato de que certos membros de tribos africanas serem tratados com deferência na comunidade por usarem uma caixa de papelão sobre a cabeça, como se isso pudesse conferir status e poder. Mas batemos palmas porque uma caveira de platina cravejada de diamantes, feita por um artista inglês, é colocada a venda por milhões de doláres, como se o artista nos disesse que, se a arte está circunscrita a um circuito e esse circuito é limitado pelo capital, então tudo o que ainda pode ser feito é salpicar esse limite (essa cerca, esse muro) com diamantes.
Não há ironia que resista ao fetiche da mercadoria. Basta se lembrar das famosas calças Lee, que nos anos 70 eram contrabandeadas do Paraguai como o suprasumo da moda.
Estamos a mercê da cobiça pelas caixas de papelão sobre nossas cabeças, seja ela um novo programa pirateado para seu computador, ou um play station de última geração, ou, quem sabe, um novo carrão importado. Aproveite porque somos globalizados e não vivemos mais tribalmente, embora sem saber até quando vai isso...
Daqui ninguém sai vivo
Afirmar uma piada sem graça, aceitando a condição de lúmpem, também não é o caso para se fazer produzir alguma diferença na paisagem devastada da cultura. Dizer-se que não é parte do banquete neoliberal, mas disputando os farelos que sobram à mesa, como se isso trouxesse alguma identidade, também não é solução.
Não há como fugir ao fato de que, se não aceitarmos nossa condição periférica não saberemos onde mais onde nos espelhar. Queríamos ser americanos, mas nos tornamos canibais sem chegar a antropófagos. Não sabemos o que é ritual e nos acostumamos a comer carne humana como se isso fosse natural.
O alemão Beuys trava uma luta com o francês Marcel Duchamp na qual quem sai ganhando é o inglês Damien Hirst (o da caveira platinada acima). Ao dizer que "o silêncio de Duchamp foi sobrevalorizado" - porque este se recusou a continuar participando das imposições do mercado de arte, radicalizando a questão que trata da arte e da vida - chamou os demais artistas à ação.
Beuys, como herdeiro de uma tradição de rupturas, em arte - da qual o próprio Duchamp foi um dos precursores - talvez tenha tropeçado em sua própria forma de ver a arte e o mundo, à sua época, quando falou sobre o muro de Berlim, mas tinha consciência que é preciso agir. Nem que que essa ação resultasse em parar um pouco, olhar ao redor e se perguntar se vale a pena seguir adiante quando estamos todos à beira do abismo.