quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

VALE A PENA RELEMBRAR: ENTREVISTA COM CATHERINE DENEUVE

(Entrevista de Antonio Nahud Júnior. Local: auditório da FNAC, em Barcelona, Espanha, 2002. Publicada em jornais de Portugal e Brasil, também faz parte do livro “ArtePalavra – Conversas no Velho Mundo”)
Perturbado, com um misto de comoção e nervosismo, observei atentamente a estrela madura e elegante, que um dia a revista Look batizou como “a atriz mais bela do mundo”, concluindo que ela conserva intacto o fascínio aristocrático. Respirei fundo, seguindo seus movimentos e esperando minha hora de iniciar a conversa. O local do nosso encontro está lotado de jornalistas, fotógrafos, convidados e curiosos. A impressão que se tem é que estamos diante de um monumento vivo.
Debutando no cinema aos 14 anos, em papel secundário, CATHERINE DENEUVE projetou-se em 1962, como a protagonista de “O Vício e a Virtude”, do seu pigmalião e amante, Roger Vadim (ex-Bardot e futuro Jane Fonda). Nascida em Paris, 1943, filha de atores de teatro e irmã da também atriz Françoise Dorléac, que morreu num acidente de carro aos 25 anos, ganhou duas vezes o prestigiado prêmio César de melhor atriz (por “O Último Metrô” e “Indochina”), obteve uma nomeação ao Oscar de atriz protagonista e levou mais um prêmio no Festival de Veneza como a rica viúva bêbada e deprimida de “Place Vendôme”.
Ela construiu uma carreira arriscada, selecionada, sólida e brilhante, filmando com grandes cineastas como Demy, Polanski, Buñuel, Monicelli, Truffaut, Téchiné e Manoel de Oliveira, entre outros. Admirada no mundo inteiro, a atriz é de uma sedução marmórea. Um ícone gélido. Resguardada, durante a entrevista limitou-se aos cumprimentos obrigatórios e às respostas curtas e contundentes. O corpo é pequeno, enxuto; os passos curtos e rápidos, equilibrados em saltos altíssimos. Vestida com um Saint-Laurent negro e adornada por uma vistosa manta de pele, conserva sua eterna beleza na expressividade de cada linha do rosto, na sofisticação natural, no talento calculado, no porte de diva.
Gérard Depardieu disse que a senhora é a mulher que ele queria ser, e na verdade muita gente compartilha esse desejo com ele.
Não exagere, mocinho. De qualquer forma, não gosto de ser modelo de ninguém, porque creio que ninguém deve ser modelo de quem quer que seja. Cada um deve parecer consigo mesmo. Mas Gérard, como o senhor, são muito gentis. De qualquer forma, não creio que mereça ser copiada, não sou feliz, embora tenha vivido muitos momentos felizes. Tenho um caráter melancólico.
Talvez invejem a sua beleza intacta que ilumina as telas e capas de revistas desde o final dos anos 1950...
Estou cansada da minha suposta beleza em primeiro plano, principalmente da dita “beleza fria”, que pouco tem a ver comigo. A beleza pode ser um grande fardo, pode ter certeza. Felizmente nunca me consideraram uma estúpida e o consolo que tenho da maturidade, ao perder a beleza física, é que finalmente lembrarão a boa atriz que sempre fui.
Com certeza está brincando. O seu talento sempre foi evidenciado, desde a burguesa prostituta de “A Bela da Tarde”. Voltando ao que desabafou pouco antes, fiquei surpreso com a sua assumida melancolia.

Séverine em "A Bela da Tarde"
Sim, é verdade. Tenho uma tendência muito grande para a melancolia, principalmente quando o passado me vem à memória. Sei que fui muito mimada pela vida, tenho uma bela carreira, mas não creio que exista a felicidade. Existem momentos felizes que passam rápidos.
Eu imagino-a como uma mulher completamente voltada para a sua profissão, e como ela é muito bem sucedida, seria capaz de jurar que nada abala o seu bem-estar.
Não é bem assim. A minha carreira nunca esteve em primeiro plano na minha vida. Sempre me preocupei muito mais com meus amigos e minha família, principalmente meus filhos. Nunca hesitei em deixar de lado uma boa oportunidade profissional por uma questão pessoal, íntima. Eu gosto do mundo do cinema. É o meu trabalho, e faço o melhor que posso, porém a verdadeira felicidade encontro nos meus filhos, nos meus amores e nos meus amigos.
É conhecida por rigorosamente preservar sua intimidade. Nunca fala de seus romances com Truffaut, Vadim, Mastroianni ou David Bailey. Tampouco sobre os seus filhos.
Esforço-me para preservar a minha intimidade e não me arrependo. Eu tenho dificuldades em revelar-me, inclusive nas telas. Há na construção de cada personagem um mistério, uma imagem lutando para não se entregar por inteiro ao público sedento da verdade imediata. Revelar-me é sempre um grande desafio. Não é algo que prefiro, mas é algo que aceito quando é decisivo para a construção do personagem. Estou disponível para isso, embora comece com uma certa relutância.
Ainda lembra-se do seu primeiro sucesso?
Evidente que lembro, mesmo passados quase 40 anos. Eu era bastante nova, tinha uns 21 anos e tive a felicidade de atuar em “Os Guarda-Chuvas do Amor”, premiado com a Palma de Ouro em Cannes... Ah, bons tempos, Demy era único.
É o seu diretor preferido?
Filmei com muitos grandes cineastas. Demy, como Truffaut, não era apenas diretor de filmes, mas também um lutador, um homem de posições fortes. Demy e Truffaut fazem falta no cinema atual.
Vi recentemente “Os Ladrões” e fiquei impressionado com a sua Marie.
Téchiné é um diretor que procura a alma dos personagens. “Os Ladrões” é um filme difícil, que fala da solidão, da incomunicabilidade dos sentidos, dos jogos do desejo. A Marie é uma figura tocada pela tragédia, uma mulher transfigurada pelo desejo, e quando já não há desejo, é mesmo o fim de tudo. É um personagem dramático e solitário.
Acaba de filmar “A Vingança do Mosqueteiro”. Significa que finalmente resolveu trabalhar em Hollywood?
Está brincando, senhor? Na época de “Fome de Amor” recebi propostas tentadoras para atuar em superproduções hollywoodianas, e preferi continuar filmando na Europa. Muitos disseram que era uma decisão irracional, mas foi uma decisão sensata. Lá jamais seria oferecido a uma atriz reconhecida um papel ousado como o de “Os Ladrões”. Hoje, com a idade que tenho, caso estivesse no cinema norte-americano, praticamente não me ofereceriam trabalho, e se o fizessem não seriam papéis dignos.

Qual o seu papel na trama do grande sucesso “Oito Mulheres”?
Tudo se passa numa distante mansão, às vésperas do Natal. Faço Gaby, a esposa do proprietário que foi assassinado e uma das suspeitas do crime. François (Ozon) desejava filmar “As Mulheres”, o clássico de Cukor somente interpretado por atrizes, como Norma Shearer e Joan Crawford, e como não foi possível, agarrou-se com unhas e dentes ao texto teatral de Robert Thomas. Neste filme ele presta um tributo às estrelas dos anos 50. O meu personagem tem um toque de glamour e vulnerabilidade resgatado de Lana Turner.
O elenco conta com Fanny Ardant, Isabelle Huppert, Emmanuelle Béart, Danielle Darrieux... Não houve problemas nas filmagens nessa junção de tantas atrizes célebres?
Felizmente, não. As filmagens foram realmente tranqüilas. Nada de atos invejosos, ciumeiras ou atritos. Houve uma extraordinária dinâmica de grupo e não tive em nenhum momento a sensação de estar comprometendo minhas companheiras com a minha atuação. O mesmo aconteceu com todas as atrizes. Afinal, não tínhamos do que reclamar, pois todos os personagens são ricos, fortes, cheios de referências e com seu momento de destaque.
Obrigado por sua atenção e gentileza.