quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

O EL DORADO


  • Daniel Munoz/Reuters
    Arqueólogos afirmam que o mito da cidade perdida feita de ouro foi mal interpretado. Para o povo muiscas, El Dorado não era um lugar, mas um líder muito rico que se cobria de pó de ouro
    Arqueólogos afirmam que o mito da cidade perdida feita de ouro foi mal interpretado. Para o povo muiscas, El Dorado não era um lugar, mas um líder muito rico que se cobria de pó de ouro
O sonho de encontrar El Dorado, uma mítica cidade de ouro perdida na selva sul-americana, levou muitos conquistadores a se aventurarem, inutilmente, por florestas e montanhas. Séculos depois, estudos arqueológicos revelam que "O Dourado" não era um lugar, e, sim, uma pessoa.

A chegada de Colombo à América, no ano de 1492, foi o primeiro capítulo de um choque de culturas que transformou o mundo, um embate brutal entre estilos de vida e crenças completamente opostos.

O mito europeu inspirado em El Dorado, o de uma cidade perdida, feita de ouro, à espera de ser descoberta por conquistadores aventureiros, condensa a sede infinita dos europeus pelo ouro e sua determinação em explorar financeiramente os novos territórios.

A versão sul-americana do mito, por outro lado, revela a verdadeira natureza deste território e dos povos que ali viviam. Para eles, El Dorado não era um lugar, mas um líder tão rico que se cobria de pó de ouro da cabeça aos pés todas as manhãs, e se lavava em um lago sagrado todas as noites.

Nos últimos anos, com base em textos históricos e pesquisas arqueológicas, especialistas desvendaram a verdadeira história por trás desses mitos.

Rito de Passagem

No centro dessa história está um ritual, uma cerimônia realizada pelo povo muisca, que desde o ano 800 d.C. habita a região central da Colômbia. 

Vários cronistas espanhóis que chegaram a essa região no início do século 16 escreveram sobre a cerimônia do Dourado. Um dos melhores relatos foi feito por Juan Rodrigues Freyle. No livro de Freyle, La conquista y descubrimiento del reino de la Nueva Granada, publicado em 1636, ele nos conta que quando um governante do povo muisca morria, iniciava-se um processo de sucessão.
O novo líder escolhido, normalmente um sobrinho do governante anterior, passava por um longo processo de iniciação. O clímax desse processo era uma cerimônia em que o novo líder, em cima de uma jangada, entrava em um lago tido como sagrado - como, por exemplo, o lago Guatavita, na Colômbia Central.
Rodeado por quatro sacerdotes enfeitados com penas, coroas de ouro e ornamentos, o líder - nu e coberto apenas por pó de ouro - entrava no lago para oferecer aos deuses objetos de ouro, esmeraldas e outras preciosidades, que ele jogava no lago.
As margens do lago circular ficavam repletas de espectadores ricamente enfeitados, tocando instrumentos musicais. Fogueiras queimavam, quase bloqueando a luz do dia. A jangada também levava quatro queimadores de incenso que jogavam nuvens de fumaça para o céu.
Quando a embarcação chegava ao centro do lago, um dos sacerdotes erguia uma bandeira para pedir silêncio à multidão. Isso marcava o momento em que o povo reunido em torno do lago prometia lealdade ao novo líder, emitindo gritos de aprovação.
É fascinante que muitos aspectos desta interpretação dos eventos históricos foram confirmados por meticulosas pesquisas arqueológicas - pesquisas que também revelam o excepcional volume e habilidade na produção de ouro na Colômbia no período em que os europeus chegaram, por volta de 1537.
Espiritualidade
O ouro da sociedade muisca - mais especificamente, uma liga contendo ouro, prata e cobre chamada tumbaga - era altamente procurado, não por seu valor material, mas por seu poder espiritual, sua conexão com divindades e sua capacidade de trazer equilíbrio e harmonia para a sociedade muisca.
Como explica Enrique Gonzalez - descendente dessa etnia -, para seu povo, o ouro não simboliza prosperidade. "Para os muisca hoje, assim como para nossos ancestrais, o ouro não era nada mais do que uma oferenda", disse. "O ouro não representa riqueza para nós".
Pesquisas recentes feitas por Maria Alicia Uribe Villegas, do Museo Del Oro, em Bogotá, e Marcos Martinon-Torres, do UCL Institute of Archaeology, em Londres, mostram que na sociedade muisca esses objetos de "ouro" eram feitos especificamente como oferendas para os deuses, para incentivá-los a promover o equilíbrio do cosmos e assegurar um relacionamento estável entre o povo e seu meio ambiente.
Outro arqueólogo, Roberto Lleras Perez, especialista em crenças e ourivesaria muisca, disse que as técnicas de criação e o uso que os muisca faziam dos metais eram únicos na América do Sul.
"Nenhuma outra sociedade, até onde eu sei, dedicava mais de 50% de sua produção a oferendas comemorativas. Acho que isso é algo único", ele disse.
Os objetos de ouro, como a coleção de tunjos (oferendas, em sua maioria, figuras antropomórficas achatadas) expostos digitalmente no British Museum, foram feitos a partir de modelos de cera. A técnica consiste em criar-se moldes de barro a partir de delicados modelos de cera que depois são derretidos. Os moldes são então usados para a criação de objetos de ouro.
Uma vez que todos os objetos de ouro em cada oferenda tinham a mesma composição química e técnicas de manufatura, os especialistas concluíram que esses artefatos eram produzidos especificamente como oferendas e talvez tenham sido fabricados horas ou dias antes de ser ofertados.
Em 1969, três moradores de um vilarejo ao sul de Bogotá encontraram, dentro de uma caverna, uma jangada de ouro com uma gravura mostrando exatamente a cena descrita por Greyle: um homem coberto de ouro partindo em direção a um lago sagrado. Esta é a verdadeira história de El Dorado.
A forma como essa história foi sendo transformada para dar origem ao mito de uma cidade de ouro revela o valor que esse metal tinha para os conquistadores europeus, como fonte de riqueza material. Eles tinham pouca compreensão do valor real do ouro para a sociedade muisca. E ficaram fascinados simplesmente ao imaginar quanto ouro não teria sido jogado nas águas profundas do lago e enterrado em outros locais sagrados na Colômbia.
E foram histórias como essas que, em 1537, levaram o conquistador espanhol Jimenez de Quesada e seu exército de 800 homens a partirem em uma rota terrestre que cruzava o Peru e subia, pelos Andes, à procura da terra habitada pelo povo muisca.
Quesada e seus homens foram atraídos para territórios cada vez mais inóspitos e desconhecidos, onde muitos morreram. Mas o que encontraram os deixou atônitos. As técnicas de ourivesaria dos muisca eram diferentes de tudo o que os espanhóis conheciam. Os olhos europeus jamais haviam visto objetos de ouro tão deslumbrantes.
Século 21
Tragicamente, a busca desesperada por ouro continua viva na Colômbia. Arqueólogos que trabalham em instituições de pesquisa como o Museo del Oro, em Bogotá, lutam contra uma maré crescente de roubos.
Assim como os conquistadores europeus no século 16, os saqueadores modernos continuam a roubar o passado da América do Sul, privando a todos nós das histórias fascinantes por trás de cada um desses artefatos.
A quantidade de ouro descoberta pelos saqueadores continua a impressionar. Na década de 1970, quando novos sítios arqueológicos foram encontrados por caçadores de ouro no norte da Colômbia, houve uma quebra no mercado mundial do ouro.
Ao longo dos séculos, este saqueamento, inspirado no mito de El Dorado, resultou na destruição da maioria dos preciosos artefatos de ouro pré-colombianos, que foram derretidos. O valor real dos objetos, as pistas que poderiam oferecer sobre uma cultura antiga, estão perdidos para sempre.
Felizmente, no entanto, coleções de artefatos que sobreviveram hoje fazem parte dos acervos do Museo del Oro, em Bogotá, e British Museum, em Londres.