domingo, 21 de dezembro de 2014

O DESPREZO DA ARTE CLÁSSICA NO BRASIL. INOVAR NÃO É BANALIZAR.

           
Não há como estabelecer comparação em termos dos  chamados espetáculos clássicos no Brasil principalmente, no eixo Rio/São Paulo tomando como exemplo alguns eventos nos espaços abertos ou em recintos fechados em países com tradição nessa especialidade. São referenciais adquiridos que motivam esse tipo de programação cultural. As temporadas são sugeridas por administradores e especialistas conhecedores do assunto e não por gente do “ramo” geralmente nomeada pelo conhecido QI (Quem Indica).
 Não se adquire de um momento para o outro o hábito de apreciar sem antes ser incentivado por estratégias motivadoras e consequentemente aplicar e usufruir da pratica de uma metodologia específica para cada abordagem.  O que se tem visto no Brasil é uma improvisação exacerbada cercada de um diletantismo de dar inveja a qualquer cantor iniciante do “hit pared”. É uma desconstrução negativa no qual os valores adquiridos ao longo dos anos são descartados em face dos eufemismos e utopias aplicados.

Os produtos culturais não são uma mera mercadoria. Existem produtores e consumidores que fomentam a indústria cultural com sapiência. Entre o que contempla e é contemplado temos uma mercadoria que deve ser consumida para que se tenha uma avaliação se os fins foram alcançados.

 Que sentido há em fazer alusões às montagens ao ar livre em países como os Estados Unidos, Alemanha, França, Itália e outros que adotam essa empreitada de popularizar o clássico. A meta é abrir possibilidades para proporcionar ao público em geral e principalmente os que não tiveram acesso a uma arte chamada de elitista de entrar em contato com um tipo de expressão distinto dos seus costumes. Os bons resultados são colhidos mediante projetos que diferenciavam a clientela alvo, dessa forma instigando a empatia do espectador. Não se pode falar o mesmo em relação às programações esporádicas e festivais implantados com suposta finalidade de permitir o acesso dos “excluídos”. 

Os mais significativos teatros no mundo que acolhem as programações clássicas costumeiras ou as atuais voltadas para esse segmento de ante mão sabem que não há lucro. É insignificante o apoio do Estado no Brasil, no exterior a iniciativa privada é mais participativa. Bons resultados foram registrados com os apadrinhamentos e recursos injetados na formação de orquestras, corais, grupos de danças, teatro nas comunidades carentes na periferia das cidades brasileiras. 

O Teatro São Pedro e Municipal ambos em São Paulo pretendem incluir compositores brasileiros contemporâneos de óperas em 2015 na sua programação. Vejamos em que isso vai dar? As “temporadas” de óperas no Brasil optam por uma programação pequena. Não há a mínima possibilidade de se apreciar títulos diferenciados dos já comumente encenados por falta de estrutura e competência. O mesmo ocorre em relação aos concertos que só fogem do cotidiano quando são orquestras estrangeiras que nos visitam. A Dell'Arte empresa cultural e de entretenimento fundada em 1982 pela empresária Myrian Dauelsberg e sediada no Rio de Janeiro é sem dúvida a responsável pela excelência de eventos clássicos,
O sucateamento do Theatro Municipal do Rio de Janeiro em locações ou empréstimos para todos os tipos de comemorações é trágico e demonstra a desqualificação dos seus diretores. Por décadas acolheu o baile de gala do carnaval da cidade Rio de Janeiro não se sabe como  a sua arquitetura não desabou.   A entrada dos teatros sem exceção em dia de função é tomada por todos os tipos de ambulantes, cambistas e pedintes. Calçadas são tomadas de lixo.  A direção ou a prefeitura jamais coibiu essa bandalha.

São válidas que essas programações culturais fujam dos espaços tradicionais e possam trazer possibilidades de emprego e fomentar o turismo. Nesse último item para se obter sucesso torna-se necessário no mínimo uma terceira edição do projeto. Fácil citar as montagens de balé de New York, a ópera em Sidney, a filarmônica de Berlim, o festival de Nantes, os concertos ao ar livre na Áustria etc...  Deve-se ressaltar que tudo é feito com muito comprometimento e envolve a contratação de bons profissionais em todos os seus segmentos e etapas. 
O conhecimento e manejo da arte possuem peso relevante para se alcançar o sucesso.  Não dá para citar os renomados eventos ao redor do mundo como motivação para inseri-los de base entre-nos ou para salvaguardar erros realizados com frequência nos poucos conceituados teatros no Brasil. O que temos visto é um amadorismo que só serve para destruir o bom padrão de décadas cultuado com esmero e competência.Rotular ou criar títulos contestadores como: “Pop”, “pós-moderno” etc não dá nenhuma legitimidade.  O projeto “Aquário” do jornal“ O Globo” é um dos raros eventos que atrai o grande público propiciando uma iniciação na esfera da música clássica.

 Na ilusão de que há um “novo público” interessado - o mesmo que clica seus celulares e máquinas fotográficas e fica robotizado e disperso sem a mínima atenção nos espetáculos é engano. Afinal esse público tem uma escola deficiente, está automatizado perante os aparelhos manuseados e no seu currículo escolar não há a disciplina musical (como antes) que motive o gosto e consequentemente a compreensão da música. Os sucessivos governos não conseguem despertar o senso crítico e gerar espectadores interessados, Não existe um planejamento educativo em longo prazo . A maioria dos restaurantes e bares das cidades substituiu a música em geral pelo aparelho de TV. O estrago dessa apatia reflete a falta de um direcionamento correto no sistema educacional. Isso explica em parte a falha no comportamento social ao se verem diante do desconhecido.

É primário dar como exemplo alguns acertos em montagens bissextas. Nas últimas décadas as temporadas têm sido obsoletas; cenografia, iluminação e figurinos paupérrimos ou fora do contexto. Um declínio lamentável, pois o Rio de Janeiro já teve central de produção técnica e grandes nomes internacionais da dança ativos e se tornaram professores escolhendo essa cidade não só para viver como profissionais ensinando padrões técnicos e interpretativos das mais renomadas companhias de dança do mundo.
 A ópera teve exemplos imprescindíveis de fora para dentro. O Rio de Janeiro já sediou um dos mais importantes concursos internacional de canto lírico com adesão de um grande público e, por conseguinte fomentando o gosto pelo bel canto. Hoje apresenta uma temporada minguada e irrelevante. Uma repetição irritante e sem imaginação. 
   
O aspecto inovador não é o fato de apresentar o “novo” e sim utilizar-se de todos os conhecimentos já adquiridos e repassá-los. Esses mestres imigrantes trouxeram na sua bagagem a escolha concernente às obras escolhidas, autores, diretores e artistas enfim, todos os componentes necessários. Para ressaltar a complexidade  de um espetáculo é preciso ter a consciência de que se lida com gerações diversas entre elas a dos mais jovens, ou seja, a geração Z na porta de entrada e totalmente dependente da tecnologia de massa. Destinados e propensos a divulgarem seu subjetivismo, suas “ideias” e em parte menosprezar os conteúdos das múltiplas culturas. É um desterritorizar sem finalidade, tendo como praxe largar os conteúdos formativos existentes. São tribos sociais sem lastros coesos a consumir de tudo e ainda não definidos para dizer por que vieram.  No caso especifico, talvez, a intenção de burlar o sistema ou pelo menos preconizar um alarde em face da confusa heterogeneidade sócio cultural vigente.

Há um desiquilíbrio qualitativo na arte em todos os níveis e
 mais comum entre-nos que a cada ano se acentua e dificulta o manuseio do senso-crítico. Afasta os que possuem uma bagagem cultural, pois não há mais acréscimo. Alguns insistem em contribuir prestigiando com suas presenças e dando informações aos curiosos. Nada contra inovar. Formar o público sem ter por obrigatoriedade alijar os que têm gostos duvidosos. Estabelecer a comparação, o diálogo, à discussão, descartar a improvisação são regras a serem seguidas. O imediatismo é próprio daqueles que não querem se confrontar os que continuam presos à tentativa de criar um “novo” sistema e, por conseguinte fazer uso do descompromisso passando por cima de tudo e de todos como se fosse uma máquina destrutiva.

 Reiterando: - querer trazer mudanças para marcar presença e conseguir verbas sem antes ter criado um projeto embasado é uma medida delapidadora. Outro aspecto importante é educar o público dando-lhe conhecimento de como interagir diante das influências da música clássica e como se comportar para usufruir de uma oportunidade que somara positivamente na sua formação. Proibir os irritantes celulares, máquinas fotográficas, crianças de colo chorando, pessoas comendo na hora do espetáculo, entrando depois da cena aberta é demonstrar a preocupação de compartilhar com o bem estar do todos

Tem sido de praxe a contratação de artistas estrangeiros sem a qualificação devida, a maioria não sinalizam para as exigências e perspectivas de informações desejadas. O valor comparativo é básico para o aprimoramento do conhecimento. Um dos bons exemplos é o Concurso Internacional BNDES de piano do Rio de Janeiro que está na sua IV edição em 2014. Reúne participantes de vários países com suas escolas diferentes. Os ingressos são gratuitos e o público corresponde a esse chamamento indo ao encontro e às normas apresentadas com satisfação.  
Não ser elitista é não escancarar as portas para “realizações” que não valorizem a arte como um todo e não complete o próprio homem.  Existem sim grandes diferenças no ato de criar e gerenciar a Arte.


quarta-feira, 26 de novembro de 2014

ESTÂNCIAS PARA A MÚSICA DE LORD BYRON



Alegria não há que o mundo dê, como a que tira.
Quando, do pensamento de antes, a paixão expira
Na triste decadência do sentir;
Não é na jovem face apenas o rubor
Que esmaia rápido, porém do pensamento a flor
Vai-se antes de que a própria juventude possa ir.
Alguns cuja alma bóia no naufrágio da ventura
Aos escolhos da culpa ou mar do excesso são levados;
O ímã da rota foi-se, ou só e em vão aponta a obscura
Praia que nunca atingirão os panos lacerados.
Então, frio mortal da alma, como a noite desce;
Não sente ela a dor de outrem, nem a sua ousa sonhar;
toda a fonte do pranto, o frio a veio enregelar;
Brilham ainda os olhos: é o gelo que aparece.
Dos lábios flua o espírito, e a alegria o peito invada,
Na meia-noite já sem esperança de repouso:
É como na hera em torno de uma torre já arruinada,
Verde por fora, e fresca, mas por baixo cinza anoso.
Pudesse eu me sentir ou ser como em horas passadas,
Ou como outrora sobre cenas idas chorar tanto;
Parecem doces no deserto as fontes, se salgadas:
No ermo da vida assim seria para mim o pranto


terça-feira, 28 de outubro de 2014

Ensaio Critico:MAIS VALE UMA PERNA QUEBRADA QUE UM TORNOZELO TORCIDO

      
A comunicação pode ser feita sem criatividade? Trata-se de uma pergunta pertinente, principalmente para quem acompanha a atuação da mídia? Há vínculos entre cultura e comunicação que se destaque ou pelo menos se aproxime de um questionamento embasado? Sistemas ou meros pronunciamentos exercem poderes para desvendar as barreiras e as inter-relações em relação à psicologia e aos objetivos da criatividade e da comunicação? Como desvendar e aplicar corretamente a comunicação que não tende a ser nociva e seja um bom atalho para promover e incentivar à criatividade (sistemas verbais e não verbais)? Essas séries de perguntas são motivadoras para que o público em geral possa chegar a um consenso,  em relação a esse final e início de século.
Definir cultura nos tempos atuais, por incrível que pareça se tornou um quebra cabeça movido por conceitos tão diversos e complexos que dá inveja a qualquer palco de plenário ou púlpito de pregações.  Tanto faz  que a transmissão de conhecimento seja explicita ou implícita o importante é que reflita o desenvolvimento da ideia e vá ao encontro do seu objetivo.
Existem fatores prejudiciais nos quais a omissão de não divulgar fatos pertinentes aos acontecimentos com isenção de opinião é um retrocesso indescritível. A maioria das organizações aplicam suas censuras mediantes seus comprometimentos econômicos e os grupos de empregados existentes nesses meios são reféns de uma atmosfera de desconfiança, insatisfação causada por pautas e segmentos pré-elaborados sem prévia discussão.  Os que se rebelam sofrem um tombo profissional fora as consequências sócias psicológicas – uma entorse cuja dor constante o coloca diante de uma inércia rudimentar.
No tocante à pluralidade dos posicionamentos acerca do conceito de cultura se estabelece inicialmente que a criatividade seja como a nascente para fluxos e refluxos dos seus afluentes os quais propiciam o crescimento de outros fenômenos e metas, entre eles as representações simbólicas do homem; as ciências e o existencial no qual as tradições visibilizem componentes essenciais da natureza.
A mídia hoje nomeia seus informantes, em larga escala, e não estudiosos conhecedores do assunto.  A maioria é chamada de “celebridades” e não tem o mínimo conhecimento acerca da matéria em questão.  Cumprem com suas “obrigações”, horários - é burra, pior que o ignorante e descompromissada com a verdade.  É a solução imediata e “correta” existente posta em pratica para uma audiência desejada.  Algo que não se pode omitir é o marketing aplicado em todas as estruturas da comunicação, pois é o alicerce que promove e acelera o faturamento de uma organização. As metas sociais são meras alegorias que ajudam justificar outros fatores de índoles escusas.
A criatividade e a comunicação não são similares mais caminham paralelamente para o mesmo fim. São tanto envolventes quanto apolíneos; salutares ou denunciadores na medida em que possam ser vistos admirados, assimilados e com isso devem espelhar a expressão do indivíduo que traz no bojo o testemunho da vida aliado aos seus sentidos.
 O potencial de cada um demostra as diferenças e estabelece conceitos. Nesse antelóquio leva-se em consideração o individual, as metáforas e analogias perante o tema. As estratégias e os conteúdos utilizados seguem-se em vários direcionamentos em sentidos (transversal, vertical, horizontal) e possibilita o Ser a interagir mediante as várias ferramentas e instrumentos para expressar a maneira concreta das relações existentes e concluir sua tarefa.

Vicente de Percia

domingo, 26 de outubro de 2014

MERITOCRACIA, TRAPAÇA E DEPRESSÃO


Psicanalista belga relaciona competição selvagem, que marca capitalismo pós-moderno, com comportamentos antiéticos dos “vencedores” e frustração da imensa maioria. “Sejamos desgarrados

Temos a tendência de enxergar nossas identidades como estáveis e muito separadas das forças externas. Porém, décadas de pesquisa e prática terapêutica convenceram-me de que as mudanças econômicas estão afetando profundamente não apenas nossos valores, mas também nossas personalidades. Trinta anos de neoliberalismo, forças de livre mercado e privatizações cobraram seu preço, já que a pressão implacável por conquistas tornou-se o padrão. Se você estiver lendo isto de forma cética, gostaria de afirmar algo simples: o neoliberalismo meritocrático favorece certos traços de personalidade e reprime outros.Há algumas características ideais para a construção de uma carreira hoje em dia. A primeira é expressividade, cujo objetivo é conquistar o máximo de pessoas possível. O contato pode ser superficial, mas como isso acontece com a maioria das interações sociais atuais, ninguém vai perceber. É importante exagerar suas próprias capacidades tanto quanto possível – você afirma conhecer muitas pessoas, ter bastante experiência e ter concluído há pouco um projeto importante. Mais tarde, as pessoas descobrirão que grande parte disso era papo furado, mas o fato de terem sido inicialmente enganadas nos remete a outro traço de personalidade: você consegue mentir de forma convincente e quase não sentir culpa. É por isso que você nunca assume a responsabilidade por seu próprio comportamento.
Além de tudo isso, você é flexível e impulsivo, sempre buscando novos estímulos e desafios. Na prática, isso gera um comportamento de risco, mas nem se preocupe: não será você que recolherá os pedaços. Qual a fonte de inspiração para essa lista? A relação de psicopatologias de Robert Hare, o especialista mais conhecido em psicopatologia atualmente.
Esta descrição é, obviamente, uma caricatura exagerada. Contudo, a crise financeira ilustrou em um nível macrossocial (por exemplo, nos conflitos entre os países da zona do euro) o que uma meritocracia neoliberal pode fazer com as pessoas. A solidariedade torna-se um bem muito caro e luxuoso e abre espaço para as alianças temporárias, cuja principal preocupação é sempre extrair mais lucro de uma dada situação que seu concorrente. Os laços sociais com os colegas se enfraquecem, assim como o comprometimento emocional com a empresa ou organização.
Bullying era algo restrito às escolas; agora é uma característica comum do local de trabalho. Esse é um sintoma típico do impotente que descarrega sua frustração no mais fraco. Na psicologia, isso é conhecido como agressão deslocada. Há uma sensação velada de medo, que pode variar de ansiedade por desempenho até um medo social mais amplo da outra pessoa, considerada uma ameaça.Avaliações constantes no trabalho causam uma queda na autonomia e uma dependência cada vez maior de normas externas e em constante mudança. O resultado disso é o que o sociólogo Richard Sennett descreveu com aptidão como a “infantilização dos trabalhadores”. Adultos com explosões infantis de temperamento e ciúme de banalidades (“Ela ganhou uma nova cadeira para o escritório e eu não”), contando mentirinhas, recorrendo a fraudes, rogozijando-se da queda dos outros e cultivando sentimentos mesquinhos de vingança. Essa é a consequência de um sistema que impede as pessoas de pensar de forma independente e que é incapaz de tratar os empregados como adultos.
Porém, o mais importante é o dano à autoestima das pessoas. O autorrespeito depende amplamente do reconhecimento que recebemos das outras pessoas, como mostraram pensadores desde Hegel a Lacan. Sennett chega a uma conclusão parecida quando percebe que a questão principal dos funcionários hoje em dia é “Quem precisa de mim?” Para um grupo cada vez maior de pessoas, a resposta é: ninguém.Nossa sociedade proclama constantemente que qualquer pessoa pode “chegar lá” caso se esforce o suficiente. Isso reforça os privilégios e coloca cada vez mais pressão nos ombros dos cidadãos já sobrecarregados e esgotados. Um número crescente de pessoas fracassa, gerando sentimentos de humilhação, culpa e vergonha. Sempre ouvimos que até hoje nunca tivemos tanta liberdade para escolher o curso de nossas vidas, mas a liberdade de escolher algo fora da narrativa de sucesso é limitada. Além disso, aqueles que fracassam são considerados perdedores ou bicões, levando vantagem sobre nosso sistema de seguridade social.Uma meritocracia neoliberal quer nos fazer acreditar que o sucesso depende do esforço e do talento das pessoas, ou seja, a responsabilidade é toda da pessoa, e as autoridades devem dar às pessoas o máximo de liberdade possível para que elas alcancem essa meta. Para aqueles que acreditam no conto das escolhas irrestritas, autonomia e autogestão são as mensagens políticas mais notáveis, especialmente quando parece que prometem liberdade. Junto com a ideia do individuo perfeito, a liberdade que acreditamos ter no Ocidente é a grande mentira dos dias atuais e de nossa época.
O sociólogo Zygmunt Bauman resume perfeitamente o paradoxo de nossa era como: “Nunca fomos tão livres. Nunca nos sentimos tão incapacitados.” Realmente somos mais livres do que antes no sentido de podermos criticar a religião, aproveitar a nova atitudelaissez-faire com relação ao sexo e apoiar qualquer movimento político que quisermos. Podemos fazer tudo isso porque essas coisas não têm mais qualquer importância – uma liberdade desse tipo é movida pela indiferença. Por outro lado, nossas vidas diárias transformaram-se em uma batalha constante contra uma burocracia que faria Kafka tremer. Há regulamentos para tudo, desde a quantidade de sal no pão até a criação de aves na cidade.Nossa suposta liberdade está ligada a uma condição central: precisamos ser bem-sucedidos – ou seja, “ser” alguém na vida. Não é preciso ir muito longe para encontrar exemplos. Uma pessoa muito bem qualificada que decide colocar a criação de seus filhos à frente da carreira certamente receberá críticas. Uma pessoa com um bom trabalho, que recusa uma promoção para investir mais tempo em outras coisas é vista com louca – a menos que essas outras coisas garantam o sucesso. Uma jovem que deseja ser uma professora de primário ouve de seus pais que ela deveria começar obtendo um mestrado em economia. Uma professora de primário, o que será que ela está pensando?
Há lamentos constantes com relação à chamada perda de normas e valores em nossa cultura. Ainda assim, nossas normas e valores compõem uma parte integral e essencial de nossa identidade. Portanto, não é possível perdê-las, apenas mudá-las. E é exatamente isso que aconteceu: uma mudança de economia reflete uma mudança de ética e gera uma mudança de identidade. O sistema econômico atual está revelando nossa pior faceta.

sábado, 25 de outubro de 2014

A ARTE ENTRE O REAL E A FICÇÃO

Vicente de Percia
                             “O Correio”, Rio de Janeiro, ano VI, nº 146, 2002
                             A Arte Entre o Real e a Ficção.
                                   Vicente de Percia                  
Nos anos 6o, artistas insistiram em utilizar-se de imagens, ready made, tentando conseguir espaços respeitável no circuito das artes.Era uma fixação onde o discurso falado predominava sobre o visual.De certo modo, deixava-se de lado a criação do domínio do conhecimento técnico e as tendências onde o suporte dessa postura estava em alegar que a pintura morrera,assim como os atelieres tradicionais,gravuras,desenhos etc...
Neste período, paralelo ao “novo discurso” pouco visual, surgiram criações voltadas para a Pop Art e europeias ligadas ao Novo Realismo. No Brasil, a produção artística se distanciava, em parte, das teorias americanas e do velho mundo que exerciam influência mundial com a Pop Art. As criações brasileiras acoplavam concepções com a arte popular e a história brasileira.
A brasilidade afastava a ironia e o cool que os artistas Liechtenstein e Warhol davam as suas obras. No geral, percebiam-se influências da nova onda nas artes plásticas nacionais. As regras estéticas de imagens de fora escondiam-se no termo abusivamente usado de “universalismo” e preenchiam os catálogos das exposições,principalmente,no eixo Rio/São Paulo.
Em meados dos anos 70, o crítico do Correio Brasiliense, Hugo Auler, elogiava o artista plástico Vicente Souza, cuja paixão era absorver a cana de açúcar. Destacava-o imprescindível naqueles instantes conflitos políticos sociais. O mesmo ocorria com o renomado artista Rubem Valentim num texto de apresentação na Oscar Seraphico Galeria de Arte em Brasília: “No momento em que a arte brasileira surge viva e polêmica com os equívocos inevitáveis de falsos e habilidosos buscadores de “raízes”, é com satisfação que vejo na pintura de Vicente de Souza, uma esperança de autenticidade. Sua seriedade, experiência e acúmulo de informações darão sua dimensão própria para no futuro que acredito seja, juntamente com outros com as mesmas motivações à conquista de uma imagem que caracteriza o Sentir Mestiço do povo brasileiro”.
A década de 70 solidificou um diálogo entre a ficção dos valores estéticos formais – cores, volumes, o transito entre o figurativo, abstrato e o geométrico. – e uma realidade voltada para as culturas da terra brasilis. Aliado a Vicente de Souza (canacultura), paralelamente se destacavam: Antônio Henrique do Amaral (bananacultura),Humberto Espíndola(bovinocultura).Outro artista entre o seu mundo repleto de particularidades e de Metáforas brasileiras é Farnese de Andrade.suas criações juntam “coisas” repletas de emoções e peculiaridades concretas significativas.
A arte integrada a aspectos econômicos brasileiros foi um dos enfoques na obra de Vicente de Souza, artista plástico do Amapá, residente  em Brasília e No Rio de Janeiro,onde foi assassinado em 1986 no bairro da Tijuca.Prêmio de Viagem de Viagem do Salão Nacional de Arte Moderna  e participante da bienal de São Paulo,entre outras presenças marcantes no Circuito da Arte,seu núcleo temático é a cana de açúcar em figurações que extrapolam os limites  agrícolas e adentram –se em nossa realidade social.
Já que, desde o Brasil Colônia, a cana de açúcar tem relevo na economia nacional ,a canacultura de Vicente de Souza vevencia a nossa Historia.Traz para a tela o olhar arguto sobre cenas que,para muitos,seriam indicações fugitivas.Seu traço junta qualidade de sentido,gerando um tipo de magia poética que fluí,de seu ar mestiço, bem brasileiro.
O processo econômico e agrícola da cana é por ele observado desde a semeadura, passando pelo surgimento dos colmos das flores em pendões terminais até a colheita e a industrialização, incluindo aí os derivados. Quando menino ele admirava os trabalhadores e professores, foi enviado pelo governo de seu estado para estudar na Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro.
Com o aparecimento de novos elementos, vindos da monocultura, moveu-se com desembaraço em nossas raízes, sem se tornar retórico.Há uma maneira muito sua de ordenar as formas da cana com traços expressivos ou pele têmpera,que acentua valores de textura,de sensibilidade dos gestos.Optando por um jogo de possibilidades,Vicente de Souza atinge um humor crítico,mexendo com problemas sociais.
Pertencente ao ciclo social das artes plásticas impôs um pensamento político aos anos 70. Em suas telas, a cana de açúcar e seus desdobramentos transfiguram reflexões bem brasileiras, em meio  a diversas formas estéticas de expressão.

Vicente de Souza – Memória – O Ciclo Social e a Canacultura

Nada mais coerente que o tempo para assimilar a produção artística. Legitimar do ponto de vista crítico de imediato é correr risco, principalmente no circuito das artes plásticas. Os apelos constantes do novo causam equívocos e com eles danos difíceis de serem corrigidos.
O indivíduo saturado de informações precisa repensar para não ser direcionado por uma dinâmica que pode levá-lo a desmobilização envolvendo-o num clip de ritmo e pensamentos apressados.
Por outro lado podemos dispor de dados para avaliar períodos no tocante a essa aceleração, coletando informações precisas e com isto trazendo à tona conceitos e diferenças contidas na própria história.
Hoje é possível afirmar o posicionamento contrário da Art Pop em função do subjetivismo e hermetismo moderno; a contra partida em denunciar nas artes, a vida farta de signos estéticos e massificados.

Dando ênfase à reflexão através de ciclos, assistimos que para alguns estudiosos o pós-moderno aparece quando a bomba atômica é lançada em Hiroschima durante a II Guerra Mundial em agosto de 1945. Outros atribuem seu nascimento a partir do termo usado pelo historiador Toynbee por volta de 1947.

Foto: Obra do artista Vicente de Souza - técnica: tela, tinta acrílica., título: " Interferências 1986. Prêmio de viagem do Salão Nacional de Arte Moderna.

domingo, 21 de setembro de 2014

O SÉCULO QUE VIVEMOS E SUAS IDIOSSINCRASIAS

Se a mídia funciona como instrumento de estimulação e de legitimação hedonistas, contribui, paralelamente, para destilar uma situação de insegurança, amplificando os temores cotidianos: medo alimentar, medo de vírus, da pedofilia, da obesidade, da violência urbana, da poluição. Quando liberado da sujeição ao coletivo, o indivíduo acha-se cada vez mais submetido aos poderes do medo e da inquietude:
Pelo sensacionalismo, a mídia constitui uma extraordinária caixa de ressonância dos perigos que planam sobre nossas existências. Por um lado, a mídia mergulha no lúdico e nas distrações superficiais; por outro lado, não pára de intensificar as imagens de um mundo repleto de catástrofes e de perigos. (LIPOVETSKY, 2004: 76-77).
As grandes mobilizações de caráter emocional só podem ser compreendidas se vinculadas ao triunfo dos valores hedonistas, lúdicos e psicológicos amplamente veiculados pelos sistemas de comunicação (LIPOVETSKY, 2004). Para estes, a espontaneidade dos afetos, a vida no presente e a liberdade nos engajamentos adquiriram uma legitimidade de massa.

Um "manual" de instruções para as escolhas

O indivíduo moderno precisa de boas razões para seguir seu Deus e suas crenças, afirma Chagas. No entanto, além dos diferentes deuses e crenças religiosas de que dispomos, hoje, como medidas paliativas para nosso mal-estar, temos inúmeras outras ofertas de orientação para a vida. Elas determinam o que devemos fazer para evitar medos, incertezas e insuficiências. "Elas oferecem, além de outras coisas, a quem procura o auto-conhecimento, a receita da felicidade plena, 'aqui e agora', 'na Terra'." (CHAGAS, 2001:25).
Em relação à reflexividade constituinte da sociedade moderna, consideremos, como explica Giddens (2002), que o indivíduo vive uma biografia reflexivamente organizada em termos do fluxo de informações sociais e psicológicas sobre os possíveis modos de vida. A modernidade representa uma ordem pós-tradicional que suscita constantes decisões sobre o comportamento, representadas por questões referentes ao que vestir ou ao que comer, por exemplo. Essas decisões fazem referência à auto-identidade. Giddens alerta para a consciência relativa que a identidade do eu pressupõe: é aquilo de que o indivíduo está consciente no termo "autoconsciência". A auto-identidade é algo que deve ser criado e sustentado rotineiramente nas atividades reflexivas do indivíduo.
No nível do eu, a escolha funciona como um componente fundamental da atividade cotidiana. Giddens aponta para o fato de que todas as tradições são efetivamente escolhas entre uma gama indeterminada de padrões possíveis de comportamento, mas que, por definição, a tradição, ou os hábitos estabelecidos, ordena a vida dentro de canais relativamente fixos. O indivíduo deve fazer escolhas referentes a seu estilo de vida , é obrigado a fazê-lo. Cada uma das decisões que uma pessoa toma diariamente contribui para as rotinas que determinam estilos de vida. Todas as escolhas são decisões não só sobre como agir, mas também sobre quem ser.
Padrões gerais de estilo de vida são menos diversos que a pluralidade de escolhas disponíveis nas decisões diárias e mesmo nas decisões estratégicas de prazo mais longo (GIDDENS, 2002). Um estilo de vida envolve um conjunto de hábitos e orientações, tendo determinada unidade que liga as opções em um padrão mais ou menos ordenado. Estando comprometido com determinado estilo de vida, o indivíduo necessariamente avalia várias opções como inadequadas a ele, da mesma forma que julga os outros com quem interage. Além disso, a seleção ou criação de estilos de vida é influenciada por pressões de grupos e completadopela visibilidade de modelos, assim como pelas circunstâncias socioeconômicas. Como envelhecer melhor, dormir melhor, relaxar e comer melhor são questões apontadas por Lipovetsky como solucionáveis pelos mais variados livros que funcionam como guias para um indivíduo que quer soluções eficazes e técnicas para os diversos problemas e questões da vida.
Como descreve Chagas, o sujeito moderno tem o desejo de ser o único e o melhor de todos. Essa é uma crítica que, de certa forma, acompanha o raciocínio de Bauman e Giddens. Ora, se cada indivíduo tem a ambição de ser o melhor e se o discurso de auto-ajuda alimenta essa ilusão, inevitavelmente verificamos a ineficácia dessa promessa, já que, obviamente, nem todos podem ocupar posições vantajosas, pelo menos não a todo o mundo e em qualquer âmbito.
O surgimento de novos estilos de vida afeta a produção, o trabalho e o cotidiano de cada indivíduo. Os valores se transformam e tornam obsoleto para hoje aquilo que valia ontem, da mesma forma que o futuro próximo pode desmerecer aquilo que valorizamos agora.

segunda-feira, 23 de junho de 2014

OS IMPASSES ENTRE INFORMAÇÕES, ARTE E ÉTICA



As coisas que nos rodeiam ativam-se através de contínuas informações. Resulta daí uma avalanche de “comunicações”, visando a implantar no público opiniões, cujo objetivo também, inclui a demanda de determinados produtos.
As artes plásticas não fogem a tal contexto, cercadas que são de intensa propaganda, objetivando divulgar e institucionalizar certos segmentos que se propõem enquadrar na tão sonhada  “contemporaneidade”. Aliais, tal atmosfera, ajusta-se perfeitamente dentro da crise de valores que o mundo e a Arte vivem continuamente.
No dia-a-dia não existem respostas objetivas ou pesquisas coerentes por parte da imprensa que levem o público a aproximar-se de resultados concretos em relação à tarefa artística. É preciso, pois despertar o interesse ou o questionamento sobre as múltiplas criações em voga, usando uma metodologia para instigar o espectador com propostas estéticas que o induzam à reflexão.
Nos noticiários não há um confronto de opiniões, um diálogo de visões acerca de cada objeto artístico exposto, e,sim,uma exaustiva e contínua concordância, o que se torna uma postura estranha para um período tão complexo como o nosso de tantas improvisações e crises.
Na década de 60, a ideia que prevalecia era que a ciência pura poderia ser reaproveitada no domínio da tecnologia. As “obras de arte” procuravam mostrar uma interação entre os dois âmbitos e o artista cedia seus propósitos criativos aos novos materiais oferecidos pela indústria. Era o vigor das luzes,dos efeitos visuais, das transparências em primeiro plano.
E agora diante dos impasses contemporâneos, como estabelecer uma visão ética coerente, que não minimize os valores individuais do Homem e, ao mesmo tempo, desperte para o usufruir das novas oportunidades que a ciência lhe oferece? Como estabelecer esta interlocução criativa, em que os dois setores - a Arte e os artefatos técnicos – em fraterna harmonia, não percam o valor intrínseco inerente a cada uma das partes?
De imediato, convém situar que o novo nem sempre e o melhor e vice-versa, principalmente quando direcionamos a avaliação crítica em função do fato estético
A alta tecnologia e a eletrônica poderão estar presentes na criação, porém sem se distanciarem dos princípios éticos e dos mistérios  que envolvem  cada ser em sua total humanidade.
          Vicente de Percia
 “O Correio”,ano IV, Nº 140,rio de Janeiro,2002

quinta-feira, 15 de maio de 2014

CUIDADOS ESPECIAIS COM OS GRÃOS

O livro de Jeremy Rifkin [ver referência acima] é uma ambiciosa tentativa de formular nova narrativa para a utopia que desabou junto com o muro de Berlim, em 1989. Sua profecia mais ousada é que o capitalismo entrará em irreversível declínio ao longo das próximas três décadas. Ele não será substituído por aquilo que costuma ser considerado seu oposto, ou seja, a propriedade estatal dos grandes meios de produção e troca, orientada pelo planejamento central.
Seu declínio não passará tampouco por mãos hostis, por processos de expropriação ou por eventos épicos como a tomada do Palácio de Inverno. Na verdade, o eclipse do capitalismo já está desenhado e decorrerá do avanço simultâneo da 00 e da economia colaborativa.
Não se trata de fé ingênua no poder da técnica: a ampliação das oportunidades de oferecer bens e serviços a partir da cooperação direta entre as pessoas (e cada vez menos, do mercado) depende do fortalecimento da sociedade civil e esbarra na gigantesca força dos interesses que procuram sempre limitar o alcance dos bens comuns (os commons, em inglês). Mas, diferentemente de qualquer época precedente, a produção e o uso de bens comuns conta agora com dispositivos cada vez mais poderosos. É nessa unidade entre a cooperação social e as mídias digitais que está a base para uma sociedade moderna, inovadora, colaborativa e descentralizada, funcionamento não se apoia nem nos mercados, nem na busca individual do lucro.
Jeremy Rifkin é professor de uma das mais prestigiosas escolas de gestão dos Estados Unidos, a Wharton. Além disso, é consultor de vários governos europeus e empresas globais. Como tantos outros intelectuais americanos, adotou postura crítica com relação ao papel das finanças na crise de 2008, apoiando o Occupy Wall Street. O mais intrigante neste seu último trabalho está no título: custo marginal zero é uma espécie de quadratura do círculo para a sabedoria econômica convencional. De fato, as primeiras páginas dos manuais ensinam que a natureza econômica dos bens e dos serviços deriva de sua escassez. É por serem escassos que os produtos são alocados por meio dos preços. A abundância generalizada (como bem o observaram, mesmo que sob enfoques diferentes, Marx, Stuart Mill e Keynes) conduziria a uma organização social com mecanismos totalmente diferentes dos que marcam a civilização atual.

terça-feira, 13 de maio de 2014

XENOFOBIA NA EUROPA

 
Partidos xenófobos podem eleger dezenas de eurodeputados, em 25/5. Esquerda não conseguirá enfrentá-los sem retomar laços com as populações empobrecidas
 
Uma coisa é certa: as eleições europeias do final de maio trarão um aumento notável do voto de extrema direita. E incorporarão ao Parlamento Europeu u número considerável de novos deputados ultradireitistas. Atualmente, eles se concentram em dois grupos: o Movimento pela Europa das Liberdades e da Democracia (MELD) e a Aliança Europeia de Movimentos Nacionais (AEMN). Juntos, reúnem 47 eurodeputados – 6% de 766 cadeiras1. Quantos serão, depois de 25 de maio? O dobro? Um número suficente para bloquear as decisões do Parlamente Europeu e, em consequência, o funcionamento da União Europeia?2
A verdade é que, desde há vários anos e em particular desde que se agudizaram a crise da democracia participativa, o desastre social e a desconfiança diante da União Europeia (UE), quase todas as eleições nos países do bloco traduzem-se numa irresistível subida da extrema-direita. As recentes sondagens de opinião confirmam que, nas eleições de maio, poderia aumentar consideravelmente o número dos representantes dos partidos ultras: Partido pela Independência do Reino Unido, UKIP (Reino Unido)3; Partido da Liberdade, FPÖ (Áustria); Jobbik (Hungria); Aurora Dourada (Grécia); Liga Norte (Itália); Verdadeiros Finlandeses (Finlândia); Vlaams Belang (Bélgica); Partido da Liberdade, PVV (Holanda); Partido do Povo Dinamarquês, DF (Dinamarca); Democratas de Suécia, DS (Suécia); Partido Nacional Eslovaco, SNS (Eslováquia); Partido do Ordem e a Justiça, TT (Lituânia); Ataka (Bulgária); Partido da Grande Roménia, PRM (Roménia); e Partido Nacional-Democrata, NPD (Alemanha).
Na Espanha, onde a extrema-direita esteve no poder mais tempo que em qualquer outro país europeu (de 1939 a 1975), esta corrente tem hoje pouca representatividade. Nas eleições de 2009 para o Parlamento Europeu só obteve 69.164 votos (0,43% dos sufrágios válidos). Ainda que, normalmente, ao redor de 2% dos espanhóis se declare de extrema-direita (o que equivale a uns 650 mil cidadãos). Em janeiro passado, dissidentes do Partido Popular (PP, conservador) fundaram o Vox, um partido situado à “direita da direita” que, com jargão franquista, recusa o “Estado partidocrático”, defende o patriotismo e exige “o fim do Estado das autonomias” e a proibição do aborto.

segunda-feira, 14 de abril de 2014

MANIFESTO PAU BRASIL

Há 90 anos, surgia documento que, ao questionar “discurso do colonizador”, abriria caminho para a Antropofagia. Eis o texto
Por Oswald de Andrade | Imagem: Theodore de BryCena de Canibalismo 1592
A poesia existe nos fatos. Os casebres de açafrão e de ocre nos verdes da Favela, sob o azul cabralino, são fatos estéticos.
O Carnaval no Rio é o acontecimento religioso da raça. Pau-Brasil. Wagner submerge ante os cordões de Botafogo. Bárbaro e nosso. A formação étnica rica. Riqueza vegetal. O minério. A cozinha. O vatapá, o ouro e a dança.
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Toda a história bandeirante e a história comercial do Brasil. O lado doutor, o lado citações, o lado autores conhecidos. Comovente. Rui Barbosa: uma cartola na Senegâmbia. Tudo revertendo em riqueza. A riqueza dos bailes e das frases feitas. Negras de jockey. Odaliscas no Catumbi. Falar difícil.
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O lado doutor. Fatalidade do primeiro branco aportado e dominando politicamente as selvas selvagens. O bacharel. Não podemos deixar de ser doutos. Doutores. País de dores anônimas, de doutores anônimos. O Império foi assim. Eruditamos tudo. Esquecemos o gavião de penacho.
A nunca exportação de poesia. A poesia anda oculta nos cipós maliciosos da sabedoria. Nas lianas da saudade universitária.
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Mas houve um estouro nos aprendimentos. Os homens que sabiam tudo se deformaram como borrachas sopradas. Rebentaram.
A volta à especialização. Filósofos fazendo filosofia, críticos, critica, donas de casa tratando de cozinha.
A Poesia para os poetas. Alegria dos que não sabem e descobrem.
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Tinha havido a inversão de tudo, a invasão de tudo: o teatro de tese e a luta no palco entre morais e imorais. A tese deve ser decidida em guerra de sociólogos, de homens de lei, gordos e dourados como Corpus Juris.
Ágil o teatro, filho do saltimbanco. Agil e ilógico. Ágil o romance, nascido da invenção. Ágil a poesia.
A poesia Pau-Brasil. Ágil e cândida. Como uma criança.
Uma sugestão de Blaise Cendrars: – Tendes as locomotivas cheias, ides partir. Um negro gira a manivela do desvio rotativo em que estais. O menor descuido vos fará partir na direção oposta ao vosso destino.
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Contra o gabinetismo, a prática culta da vida. Engenheiros em vez de jurisconsultos, perdidos como chineses na genealogia das idéias.
A língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e neológica. A contribuição milionária de todos os erros. Como falamos. Como somos.
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Não há luta na terra de vocações acadêmicas. Há só fardas. Os futuristas e os outros.
Uma única luta – a luta pelo caminho. Dividamos: Poesia de importação. E a Poesia Pau-Brasil, de exportação.
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Houve um fenômeno de democratização estética nas cinco partes sábias do mundo. Instituíra-se o naturalismo. Copiar. Quadros de carneiros que não fosse lã mesmo não prestava. A interpretação no dicionário oral das Escolas de Belas Artes queria dizer reproduzir igualzinho… Veio a pirogravura. As meninas de todos os lares ficaram artistas. Apareceu a máquina fotográfica. E com todas as prerrogativas do cabelo grande, da caspa e da misteriosa genialidade de olho virado – o artista fotógrafo.
Na música, o piano invadiu as saletas nuas, de folhinha na parede. Todas as meninas ficaram pianistas. Surgiu o piano de manivela, o piano de patas. A pleyela. E a ironia eslava compôs para a pleyela. Stravinski.
A estatuária andou atrás. As procissões saíram novinhas das fábricas.
Só não se inventou uma máquina de fazer versos – já havia o poeta parnasiano.
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Ora, a revolução indicou apenas que a arte voltava para as elites. E as elites começaram desmanchando. Duas fases: 1ª) A deformação através do impressionismo, a fragmentação, o caos voluntário. De Cézanne e Malarmé, Rodin e Debussy até agora. 2ª) O lirismo, a apresentação no templo, os materiais, a inocência construtiva.
O Brasil profiteur. O Brasil doutor. E a coincidência da primeira construção brasileira no movimento de reconstrução geral. Poesia Pau-Brasil.
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Como a época é miraculosa, as leis nasceram do próprio rotamento dinâmico dos fatores destrutivos.
A síntese
O equilíbrio
O acabamento de carrosserie
A invenção
A surpresa
Uma nova perspectiva
Uma nova escala.
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Qualquer esforço natural nesse sentido será bom. Poesia Pau-Brasil
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O trabalho contra o detalhe naturalista – pela síntese; contra a morbidez romântica – pelo equilíbrio geômetra e pelo acabamento técnico; contra a cópia, pela invenção e pela surpresa.
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Uma nova perspectiva.
A outra, a de Paolo Uccello criou o naturalismo de apogeu. Era uma ilusão ótica. Os objetos distantes não diminuíam. Era uma lei de aparência. Ora, o momento é de reação à aparência. Reação à cópia. Substituir a perspectiva visual e naturalista por uma perspectiva de outra ordem: sentimental, intelectual, irônica, ingênua.
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Uma nova escala:
A outra, a de um mundo proporcionado e catalogado com letras nos livros, crianças nos colos. O reclame produzindo letras maiores que torres. E as novas formas da indústria, da viação, da aviação. Postes. Gasômetros Rails. Laboratórios e oficinas técnicas. Vozes e tics de fios e ondas e fulgurações. Estrelas familiarizadas com negativos fotográficos. O correspondente da surpresa física em arte.
A reação contra o assunto invasor, diverso da finalidade. A peça de tese era um arranjo monstruoso. O romance de idéias, uma mistura. O quadro histórico, uma aberração. A escultura eloquente, um pavor sem sentido.
Nossa época anuncia a volta ao sentido puro.
Um quadro são linhas e cores. A estatuária são volumes sob a luz.
A Poesia Pau-Brasil é uma sala de jantar domingueira, com passarinhos cantando na mata resumida das gaiolas, um sujeito magro compondo uma valsa para flauta e a Maricota lendo o jornal. No jornal anda todo o presente.
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Nenhuma fórmula para a contemporânea expressão do mundo. Ver com olhos livres.
Temos a base dupla e presente – a floresta e a escola. A raça crédula e dualista e a geometria, a álgebra e a química logo depois da mamadeira e do chá de erva-doce. Um misto de “dorme nenê que o bicho vem pegá” e de equações.
Uma visão que bata nos cilindros dos moinhos, nas turbinas elétricas; nas usinas produtoras, nas questões cambiais, sem perder de vista o Museu Nacional. Pau-Brasil.
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Obuses de elevadores, cubos de arranha-céus e a sábia preguiça solar. A reza. O carnaval. A energia íntima. O sabiá. A hospitalidade um pouco sensual, amorosa. A saudade dos pajés e os campos de aviação militar. Pau-Brasil.
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O trabalho da geração futurista foi ciclópico. Acertar o relógio império da literatura nacional.
Realizada essa etapa, o problema é outro. Ser regional e puro em sua época.
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O estado de inocência substituindo o estado de graça que pode ser uma atitude do espírito.
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O contrapeso da originalidade nativa para inutilizar a adesão acadêmica.
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A reação contra todas as indigestões de sabedoria. O melhor de nossa tradição lírica. O melhor de nossa demonstração moderna.
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Apenas brasileiros de nossa época. O necessário de química, de mecânica, de economia e de balística. Tudo digerido. Sem meeting cultural. Práticos. Experimentais. Poetas. Sem reminiscências livrescas. Sem comparações de apoio. Sem pesquisa etimológica. Sem ontologia.
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Bárbaros, crédulos, pitorescos e meigos. Leitores de jornais. Pau-Brasil. A floresta e a escola. O Museu Nacional. A cozinha, o minério e a dança. A vegetação. Pau-Brasil.
OSWALD DE ANDRADE
Correio da Manhã, 18 de março de 1924.

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

MOSTRA DE REDE DE DORMIR - BRASIL

  •  No Balanço da Rede traz cinquenta modelos. O panorama apresenta desde versões mais primitivas, de origem indígena, como a hamaka, tramada em fibras de tucum, buriti ou carnaúba, até peças mais sofisticadas e contemporâneas, com varandas de crochê ou bordadas. Na exposição, com cenografia de Guilherme Isnard, o artefato aparece entre plantas e objetos de arte popular, a exemplo de esculturas assinadas pelos artistas Resendio e Roberto de Almeida.

     
  • Segundo Camara Cascudo
  • Afirma não haver registro antigo da rede fora da América. O português haveria levado a rede para a Índia e para a África.
  • Não sabe precisar porque a rede surgiu na América e não na África, apesar das semelhantes condições ambientais. Aponta os deslocamentos migratórios dos povos americanos como possível fator para a invenção da rede. "A presença de todos os fatores estabelece a invenção numa e não noutra paragem, possuidora de igualíssimo ambiente ecológico. E ninguém pode fixar o movimento inicial que redundou num conhecimento "novo" e sua aplicação subseqüente, distinções que Ralph Linton fazia entre "descoberta" e "invenção" (p.63).
  • A origem da rede também não é clara e Cascudo discute a possível influência das redes de pescar e de capturar pássaros.
  • Registra o costume de se dormir ao lado de uma fogueira e afirma o significado do fogo, um aliado divino que além de proporcionar calor e vigilância era também um elemento defensivo de alto poder mágico.
  • Lista os materiais usados na fabricação das redes: cipós, tecidos de palmeiras e por fim o algodão. Registra um pequeno vocabulário do uso da rede na língua nhengatu e atesta a veracidade da informação com a seguinte frase: "São depoimentos com meio século de convivência local"

  • Caixa Cultural — Galeria 3. Avenida Almirante Barroso, 25, Centro, ☎ 3980 -3815,  Carioca. Terça a domingo, 10h às 21h. Grátis. Até 23 de fevereiro. A partir de terça (14). 

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

POEMA-TIUBILHÃO


Publicada recentemente no Brasil, obra expõe desejo de superar capitalismo também na forma poética, apaixonadamente, recusando reduções e utilitarismos do “realismo socialista”

Vladimir Ilitch Lenin
Poema de Vladimir MaiakovskiTradução de Zoia Prestes
234 páginas, R$ 80,00Editora Anita Garibaldi

Há cerca de um ano foi publicado pela primeira vez no Brasil o longo poema Vladimir Ilitch Lenini, do grande poeta Vladimir Maiakovski, em boa tradução de Zoia Prestes, feita diretamente do russo. Como de hábito quando se trata de textos de alta complexidade estética, a recepção na imprensa conservadora foi apressada e pautada em velhos clichês. Basta que se faça uma breve incursão por essas leituras simplificadoras para que o leitor encontre nos críticos uma ânsia por classificar o longo poema entre as fronteiras do modelo burguês de apreciação literária, ou seja: considerando-o “didático”, “homenagem” e, é claro, “engajado”. Parece claro que a maioria dos críticos que emprega esses termos ao ler o longo poema de Maiakovski não só rebaixa a amplitude político-estética do texto, urdido no difícil tumulto do tempo revolucionário, como também aproveita para destilar certo veneno cujo fim é discretamente infamar tanto o autor quanto o seu herói. Já passa da hora de superar esse tipo de leitura e saudar esta bela publicação que, um século depois, começa a finalmente apresentar de forma legítima o poeta Maiakovski ao público brasileiro, que o conhecia de traduções de segunda mão ou que arbitrariamente criavam uma fantasmagoria maiakoviskiana, capaz de atender especialmente a outros interesses em jogo no nosso sistema literário.
Como o próprio título deixa claro, o poema é um longo canto poético-político, em que a figura central é Lenin (1870-1924), o grande estrategista e líder político da Rússia revolucionária do início do século XX. Todavia, o vigor, a atualidade e o interesse do texto não se encontram na reconstituição de passagens da sua vida. É claro que Lenin é o herói do poema, mas isso é muito diferente de se dizer que a obra de Maiakovski funciona apenas como uma espécie de biografia, registro histórico ou louvação do protagonista no processo revolucionário que ainda estava em curso quando da sua morte. Os fatos da Revolução não aparecem no poema apenas como documento, mas conformados em uma narrativa de contradições graves da história do movimento anticapitalista, as quais, por sua vez, exibem-se e agitam-se no anseio de uma forma que lhes transfigure esteticamente e lhes dê alguma inteligibilidade realista. Para começar, portanto, uma abordagem crítica que se pretenda à altura da complexidade desse poema, é preciso assumi-lo primeiramente como forma poética que problematiza o lugar da arte, sua função e suas formas num mundo que estava tendencialmente voltado para a superação das estruturas burguesas, seja no que se refere ao que é econômico e político, seja no que se refere ao que é estético, ético, sensorial e moral. O poema poderá, nesses termos, ser tomado como uma grande questão poética/ontológica e também como o ensaio de sua resposta. Que lugar e que forma tem/teria a arte num mundo pós-capitalista? Essa é a força de Vladimir Ilitch Lenin, a qual é preciso saber observar para julgar razoavelmente a sua eficácia estética.
Primeiramente deve-se lembrar o altíssimo grau de consciência exibido por Maiakovski acerca dos limites e potencialidades do ato literário em um contexto de intensa agitação histórica. Os problemas da expressão estética no poeta russo sempre tiveram a amplitude da possibilidade de superação do sistema capitalista, ou seja, a forma poética deveria intuir (talvez descobrir?) a nova língua literária que seria capaz de traduzir o novo mundo imaginado pelas utopias e pelas ações políticas. No poema de que tratamos aqui, a dialética transfiguradora essencial do texto reside na tensão entre a imagem histórica de Lenin e a de um vigoroso narrador sentimental, o próprio Maiakovski. Sendo assim, mais do que personagem histórico, este Lenin do poema é um problema estético-político encarado radicalmente pelo seu narrador. Como nos lembra Leandro Konderii: “Maiakovski sabia que o artista revolucionário deve corresponder a uma exigência social, decorrente do seu compromisso com as forças propulsoras do progresso. Mas sabia, também, que a exigência social não coincide, necessariamente, com as exigências práticas que são formuladas em nome dela”. Noutras palavras, Maiakovski não apenas possuía os meios técnicos para reformular a expressão literária conferindo-lhe lastro revolucionário, mas também um sagaz e inquieto vigor ideológico, que possibilitava a ele forçar as fronteiras canônicas da instituição literária, nos termos que lhe foram atribuídos pela sociedade burguesa em seu movimento de apropriação deste bem universal. Com Maiakoviski vê-se, pela primeira vez e radicalmente, o horizonte de superação da arte na sociedade de classes capitalista.
Um elemento determinante da arte poética de Maiakovski (diga-se de passagem, nem sempre bem visto por críticos marxistas de diversos matizes) está na centralidade expressiva do seu conhecido “pathos de exaltação sentimental”, da sua “passionalidade”. Pathos este que é exemplarmente configurado nos seus já famosos versos “A anatomia comigo ficou louca / sou todo coração”. Pois bem: tal “passionalidade” é um grande filtro ético/estético, que põe o poeta em salvaguarda de uma construção ideológica imediatizada ou instrumentalizada. Tudo em Maiakovski, portanto, sofre uma mediação dialeticamente meditativa e passional. Tal meditação poética não se resolve pela razão instrumental: nem burguesa, nem pseudo-revolucionária. Sua meditação se resolve no íntimo do “coração”, de um pathos poético que é capaz de traduzir o mundo sentindo-o como pessoa comum.
Esse movimento de estruturação passional da poesia maiakovskiana é fundamental, como já dissemos, para a configuração inusitada do longo poema Vladimir Ilitch Lenin. Com ela, Maiakovski apresenta uma concepção poética bastante distinta daquilo que foi, por exemplo, o âmago do pensamento de André Zdanov, que, como um dos principais ideólogos de Stalin, sancionou, pela via do espírito de partido, uma visão reducionista, imediatista e utilitarista da literatura em particular e da arte em geral no contexto revolucionário. Em fim de contas, tratava-se, tanto em Maiakovski quanto em Zdanov de encontrar meios de superação das categorias fundamentais da expressão artística sob a égide do sistema capitalista, tais como o “formalismo”, a “gratuidade”, o “subjetivismo”, a “tibieza ideológica”. Se no caso do zdanovismo objetivava-se negar essas categorias como defeitos que não deveriam estar presentes na pretensa arte revolucionária, no caso de Maiakovski, tratava-se de tensionar ao máximo as contradições dessas e de algumas outras das mais consagradas categorias da arte literária construída ao longo de anos de sedimentação da cultura ocidental. Ou seja, para Maiakovski certamente a arte de todos os tempos era um patrimônio que precisava ser revolucionado, não uma fortaleza pertencente à burguesia e que, portanto, deveria ser destruída. Maiakovski nunca foi um pensador, crítico ou filósofo de grande estofo, mas é forçoso reconhecer que o princípio da “passionalidade” que guia suas obras fez com que os riscos instrumentalizadores de alguns matizes da ação revolucionária fossem afastados de sua obra, a qual termina por se configurar como um eficiente e dilacerado motocontínuo de pensamento/sentimento sobre a potência da utopia e a materialidade da força necessária para realizá-la.
Vladimir Ilitch Lenin é um dos melhores retratos desse esforço de problematização metalinguística e ação revolucionária via literatura de Maiakovski. Pela sua amplitude e complexidade, pela multiplicidade de elementos da tradição literária que estão dentro dele revolucionados, sob a inquieta dialética firmeza do herói X passionalidade do narrador, ele pode ser lido como um poema-turbilhão. Como a força épica e lírica disparada pela tormenta que é morte do grande herói, o poema de Maiakovski vai, vorazmente, arrastando em seu turbilhão um sem número de matérias histórico/poéticas, ressignificando-as e dando-lhes novas funções, ao agitá-las numa turbamulta ordenada pela paixão e pela missão de dar inteligibilidade seja ao sentimento do povo, de que o poeta é porta-voz, seja aos fatos ligados à biografia de Lenin, dentro do escopo histórico e semântico da Rússia revolucionária.
Iniciando-se a narração com a morte de Lenin, deslinda-se, ao longo do extenso poema, uma dinâmica e multipoética forma que dará vazão a um canto de esclarecimento, de iluminação clara e consciente, embora não puramente racional, porque, como já dissemos, será guiada pela “passionalidade” da dor humana e comum gerada pela perda do herói. Nos seus primeiros versos, o poema estampa: “É hora – / inicio / a história de Lenin. / Não porque / não há mais / desgraça, / é hora / porque / uma tristeza brusca / virou uma dor / clara e consciente. / É hora, / novamente / os lemas de Lenin em turbilhão”. Deste turbilhão fazem parte, sobretudo, os elementos da poética burguesa, reativados, revolucionados, tensionados ao limite de suas contradições. O leitor verá que o Vladimir Ilitch Lenin é uma multidão de trejeitos, gêneros e tipos poéticos. Lá estão em movimento e ressignificados em atiladíssima revolta formal o poema metalinguístico de trabalho com a palavra-coisa, a poesia-propaganda, o mergulho mais intimamente lírico, a disposição épica, a narrativa ficcional de memória histórica, a agitação, a oratória poético política, a análise e a crítica política etc. Nada disso, entretanto, encerra-se em si mesmo. Nada disso se basta a si mesmo. Maiakovski decididamente faz as formas tradicionais da literatura burguesa delirarem de utopia e desejo revolucionário.
Entre os traços mais importantes desse movimento está problematização em progresso no longo texto de Maiakovski acerca, por um lado, do chamado do poeta pela sociedade que se revoluciona e, por outro, da impotência e da pequenez humana sentida pelo escritor diante dos limites históricos reais da palavra poética. O narrador exibe-se consciente da necessidade de assunção pelo poeta do mandato da escrita: “Meu coração pede – / tenho que escrever / pelo dever do mandato”. Contudo, mais à frente, vê-se que o poeta problematiza a assertividade do mandato, ao dizer: “Como é pobre / no mundo / a oficina da palavra! / Onde a mais adequada / pegar?”. Assim, pode-se, por meio desse breve exemplo, perceber que tudo vai sendo dialeticamente problematizado, revolvido, em meio à missão de narrar a história de Lenin, do marxismo, da revolução, e também, de alguma forma, da nova situação da poesia naquele momento agudo da história da humanidade.
No caso da figura de Lenin, o poeta procura resgatar a característica de humanidade do líder político, de modo literariamente muito moderno, isto é: exibindo leis poéticas desse mesmo trabalho de resgate. Tal humanidade será reiterada inúmeras vezes no poema, muitas vezes por meio de belíssimas metáforas. É essa humanidade de Lenin que gera a principal liga de empatia entre o herói e seu narrador; é o que, por assim dizer, dispara o turbilhão que até aqui se tem apresentado. Diz o poeta, na cena que retrata o enterro do líder: “Diante de milhões de olhos, / e dos meus / dois, / apenas caramelos congelados de lágrimas, / grudados / às bochechas. / Para Deus / as honras oficiais / não são novidade. / Não! / Hoje / de dor verdadeira / gele, coração.” A “dor verdadeira”, desentranhada da imagem do protocolar funeral do líder, é também um dos motores do poema-turbilhão. Essa “dor verdadeira” visa esclarecer ao leitor a humanidade terrena de Lenin e contrastá-la com a desumanização do sistema capitalista. Esse é o desejo narrativo do poeta que diz: “O que ele fez, / que é ele / e de onde – / esse / mais humano dos humanos?”. Trata-se do “líder / semelhante a nós / – mais simples que o pão, mais direto que os trilhos”. Dessa forma, o “mais humano dos humanos”, deixa de ser um líder político instrumentalizado para, no contexto do poema, se transformar no personagem, a um só tempo, forte e frágil, humano em todos os sentidos, que é o antípoda do capital. Nesse espírito se articulam dinamicamente a biografia de Lenin e a genética do capitalismo, que sofre no texto uma transfiguração personificadora. Diz o poeta, imbuído da sua demanda social e política: “Para os netos / escrevo / numa folha / o retrato / genético do capitalismo”. Nessa missão de narrar o capitalismo personificado, a intensidade das imagens é lancinante: “Apenas engordando, / comendo e dormindo, / o capitalismo inchou / e flácido ficou. / Flácido / deitou-se / na história a caminho / do mundo, / como se sua cama fosse. / Não dá para contornar, / nem desviar; / a única saída – / é explodi-lo!” Parte da tarefa de explodi-lo é reinventar meios e formas novas de sentir e expressar artisticamente esse sentimento. Este é o intento de Maiakovski, não apenas em Vladimir Ilitch Lenin, mas em toda a sua trajetória que culmina com o duro e corajoso suicídio.
Na bela apresentação que faz do poema, Adalberto Monteiro alerta o leitor brasileiro: “Em seus poemas, Maiakovski frequentemente se dirige ao futuro, conversa com gerações de séculos vindouros. Por este e outros motivos, seus adversários diziam que ele padecia de gigantomania. Os desafetos da atualidade assacam-no: sua poesia teria sido enterrada no mesmo túmulo onde jaz a URSS. Mas a autoprofecia vai se confirmando. Sua poesia, como uma seta, a travessa a carne macia do tempo”. O poeta russo é mais do que nunca atual, com seu lirismo altissonante, delicado e energicamente engajado.
Estética, política, poética e pathos são insepráveis neste grande escritor. Não se pode aquilatar um desses elementos sem se considerar dialeticamente outro, ou outros. O poema a que o público brasileiro hoje tem acesso começa, pois, a finalmente recolocar Maiakovski numa situação mais próxima da original e, por isso, mais verdadeira historicamente. Até hoje a recepção que se teve dele no Brasil frequentemente esforçou-se por aquilatá-lo quase a fórceps em anódinos moldes concretistas, desrevolucionando a forma maiakovskiana com uma leitura pautada por um conceito desenergizado de temporalidade histórica e por uma concepção de poesia que se baseava, no mais das vezes, em platitudes pedantes acerca da palavra-coisa. Quando a crítica conservadora brasileira resgata o slogan maiakovskiano da forma revolucionária, deseja, no fundo, despolitizar uma poesia que, na verdade, sempre foi política e revolucionária, porque abriu suas comportas para a imanência do processo social.
Será preciso revolucionar a leitura que fizemos até aqui do poeta russo. Vladimir Ilitch Lenin provoca os termos de que dispomos hoje na crítica literária, os quais parecem não alcançar a possibilidade de descrever a beleza incisiva, dos versos a seguir, que jamais poderão ser observados unilateralmente, ou programaticamente: “Sou feliz. / A água da marcha que soa / leva / meu corpo imponderável. / Eu sei – a partir de agora / e para sempre / em mim / esse minuto / é o minuto. / Sou feliz, / que sou / a força dessa partícula, / que são comuns até mesmo as lágrimas dos olhos. / Impossível / com mais força / e mais pureza comungar / do grande sentimento / chamado – classe!”. A progressão poético imagética do trecho realiza o magma lírico que mescla indivíduo e grupo, classe e coletividade. Depois de lermos as palavras do poeta, nada é mais aquilo que o capitalismo nos ensinou a ser. Todos somos, podemos ser outros; o Ser o é de outra forma. A poesia de Maiakovski é, sem dúvida, uma revolução literária, em que já não é possível separar o poético do político, o gratuito do empenhado. Infelizmente, nossa miopia crítica, acirrada com o mundo pós-moderno, não nos deixa fruir em toda a sua amplitude o belo desses versos. Vladimir Ilitch Lenin é um livro-poema para se ler várias vezes, pois a cada nova leitura tudo se tornará ainda mais claro e mais intenso, como os cem sóis que habitavam prodigamente os versos de Maiakovski.
i MAIAKOVSKI, Vladimir. Vladimir Ilitch Lenin : poema. Tradução Zoia Ribeiro Prestes. Apresentação Adalberto Monteiro. Ilustrações de Mazé Leite. São Paulo: Anita Garibaldi / Fundação Maurício Grabois, 2012.