Em face da morte de Pingo de Percia meu filho, amigo e
companheiro e diante da dor que afasta a saudade e impõe uma exclusão em
relação ao mundo e a própria vida, resolvi ir até Cartagena da Índia na
Colômbia. Novembro de 2015, algumas semanas depois do seu falecimento. A escolha se deu porque não conseguia ficar em casa sem meu querido e
amado cão. O vazio e o silêncio desolador do meu apartamento montava um
ambiente insuportável. Pingo de Percia era um belíssimo e irrequieto Fox
terrier conhecido como paulistinha. Ocupava todos os espaços ao mesmo tempo,
dormia na minha cama e impunha as normas da casa. Eu humildemente fazia parte
da matilha ele era quem mandava. Toda essa envolvência só me trouxe muito amor
e aprendizado.
Os dias e anos, juntos, se passavam os meus cabelos cada vez
mais embranqueciam com adesão os pelos curtos do Pingo seguiam o mesmo destino.
Tinha manchas negras perfeitas, largas, geométricas montando uma composição
visual de dar inveja a qualquer artista de renome. O lema do Pingo quando eu o
provocava ou quando usava o seu instinto de caçador era: - Quem Ama morde.
Poucas vezes perdia a paciência com ele. Na nossa vida conjunta passamos a ser
um só corpo. Os amigos sempre perguntavam por ele, onde eu estivesse, falavam
nele e eu mostrava as fotos que enchiam o meu celular ou máquina fotográfica.
Um garanhão. Foi um excelente reprodutor e sempre a minha casa era transformada
em um harém.
Minha fuga para Cartagena me obrigou propositalmente a
caminhar muito e a enfrentar um calor fortíssimo. Propositalmente queria cansar
o meu corpo para desanuviar um pouco o meu luto. De manso a cidade foi me envolvendo.
Fiquei em um hotel simples e confortável dentro das muralhas, junto ao centro
histórico. Nessa nova escala aos poucos se impunha um cenário impar, diferenciado
por construções desde o século XVII - um acervo arquitetônico cativante. A vida
cosmopolita que estava sempre ao meu lado tinha desaparecido para dar lugar a enfileiramentos
de casarios, balcões floridos e relíquias de portas e janelas com marcenaria,
marchetarias e serralheria para jamais esquecer.
Novos signos da América Central ou do chamado Caribe
Colombiano se misturavam diante de mim, as diferenças eram perceptíveis. O meu
senso de observador gradativamente ia se amoldando ao meu olhar. Como me
apresentei à cidade de Cartagena? Espontaneamente sem rumo definido. O
crítico e o poeta se tornaram um pouco mais fortes em face das idiossincrasias
da vida, apesar de várias vezes ter me surpreendido chorando.
A imagem histórica e o diferenciar dos habitantes mostravam
seus repertórios para mim. Tudo ao meu
redor se apropriava do meu pensamento, funcionava como uma hipnose para
combater o meu sofrimento. Cada canto me contava uma história, articulava
discursos e juntava figuras imaginárias entrando sem pedir licença. O tempo
organizava minha agenda em relação à arte na América Latina e as redescobertas
eram assimiladas. Desde perspectivas, sons, cores, vielas, calçadas, pedras,
ferro, esmeraldas, tecidos, palhas, frutas até o prolongamento da minha dor – Tudo
estava sendo reformulado e o meu inconsciente à medida que penetrava naquela
cidade se modificava.
Tinha conhecimento dos simbolismos, arquétipos, dos sinais,
da literatura e das artes plásticas através de diferentes meios de comunicação
o que não afere a mesma emoção do que estar diante do real aqui nessa cidade. O
conhecimento comedido que eu tinha da arte e dos demais componentes de
Cartagena dava-se em parte, por falar outro idioma: o português (domino tanto
na leitura quanto no falar o espanhol). O estudo da arte na Américas vinha em
parte via Europa ou Estados Unidos e com isso se abria uma lacuna, pois os
padrões passados não eram condizentes com os que me deparo. A comunicação agora
é correta, direta e a assimilação é mais credenciada. Os dois polos artísticos
iniciais vistos foram o sítio histórico em seguida os usos e costumes do povo
que para mim surgiram como personagens de uma obra cênica.
As relações de dominação ainda são aparentes e elas se
revelam nos mínimos detalhes. Não há resistência que enfrente a corrupção, o
trafico de drogas, o despreparo dos políticos, uma economia instável e as “novas”
edificações feitas em nome do progresso. Esse efeito é globalizado pernicioso. As
referências incorretas voltadas para o exterior num desprezo dos valores
autóctones acarretam danos irreversíveis.
A adoção de suportes referenciais do país como a arte pré-colombiana
pouco aparece entre os artistas contemporâneos. É uma desqualificação
subliminar adquirida ao longo dos anos. Como ir de encontro a esse processo que
vira as costas para uma latinidade riquíssima? e se curva perante uma dominação
de fora para dentro. Há um tipo de “arte” chamativa ou própria das republicas das
bananas voltada para o exotismo, moldado em gosto duvidoso para estrangeiro
ver. A arte é um segmento vital e não pode ser controlado por sistemas. O fazer
artístico não é isolado. É preciso que críticos, professores, marchand,
gerenciadores, curadores, autoridades estejam ligados a uma economia fortifique
a produção da arte.
Após visitar toda a parte histórica e admirar os casarios
floridos e a diferenciada culinária. Complementei minha estada indo aos museus
e a procurar artesanatos de regionais de qualidade. Por sorte esbarrei com uma
bela cadela dálmata que sem perceber. Diante das festas, lambidas, pulos,
carícias à dona da perra se aproximou e me pediu desculpas pelo incomodo.
Mediante esse assédio descobrimos ter uma afinidade em comum ambos estávamos
atrelados à arte. Norma Isabel Uparela representante de artistas colombianos.
Proprietária de um escritório “ArtCartagena” a poucos metros do meu hotel. Apresentei-me
como crítico e de imediato recebi o convite para conhecer algumas referências
da arte Colombiana. O encontro se deu
alguns dias depois, gentilmente foi me apanhar no hotel.
Partes de umas significativas obras de artistas me foram
mostradas com uma descrição detalhista. Fora dos “padrões” da América Latina
onde a prepotência da cultura externa está presente e traz sequelas. É sabido e comprovado como funciona o aval de
ser um artista contemporâneo, na maioria obedecendo a um gosto gerenciado. A
arte imediatista sem conteúdo e que só visa o lucro em face do modismo e
amplamente posta em pratica pelo circuito da arte.
Conheci a obra de Alfredo Piñeres artista autodidata
reconhecido como um expoente da arte popular na Colômbia. De família pobre e
infância pobre imigrou para a cidade em face do campo não lhe oferecer
condições. Um artista nato começou na faixa dos 40 anos. Hoje é o pintor dos
cartageneros. Hoje artista assumido tem uma figuração em que retrata todas as
nuances do seu povo e vive da sua arte. A recordação da sua infância é tema
também para sua obra, sua família, seus amigos, vizinhos e acontecimentos
significativos da sua vida. Pedro Ruiz
como uma figuração onde predomina o belo se engaja em um figurativismo lírico e
ao mesmo tempo doloroso, pois denuncia com suas composições elaboradas e
detalhistas questões como o desmatamento, o êxodo, o plantio da papoula e o seu
visual nas múltiplas interpretações. “Oro Espiritu y Naturaliza de um
Territórios” é outra visão da Colômbia. Ruiz adentra para instalações onde o
seu estilo é de imediato reconhecido. Há um paralelo entre o seu preciosismo e
detalhes nas suas composições em tela sobre tinta e o engajamento em outros
suportes como desenhos, colagens e instalações.
Na visita ao Museu de
Arte Moderna de Cartagena conheci in loco as obras de Ofélia Rodríguez -
artista original e legitimada inclusive no exterior. Sua obra remete-nos de
imediato à cultura colombiana. Desde ensembles de pinturas, colagens, objetos.
Suas obras anexam objetos do cotidiano que integram um espaço com cores
fortes. O figurativo, geométrico, a ilusão e as
múltiplas representações acenam para uma artista fincada na atual produção da
arte contemporânea sempre com sinalizações do seu país. Tanto a arte popular
quanto as influências de escolas conceitualistas como o Dada integram sua obra.
Sua formação inicial foi na Colômbia e nos Estados Unidos o que lhe
proporcionou contato com uma variedade de praticas artística e a pôs em contato
com espaços e profissionais renomados.
É notório que a modernidade de países mais desenvolvidos
sofreu fortes influências da arte pré-colombiana e africana. Os sistemas de
arte nos diferentes países latinos americanos necessitam ser revistos para que
se possa mostrar os reais valores e contribuições dessa arte em todo o mundo.
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