sábado, 24 de outubro de 2015

VAMOS FALAR DO ÍNDIO E DA SUA CULTURA

Em benefício de grandes empresas, Lei da Biodiversidade está prestes a produzir um  absurdo: cobrar pelo uso comercial de plantas brasileiras, sem remunerar povos que nos ensinaram a conhecê-las
Por Nurit Bensusan, no Instituto Socioambiental
Há cerca de uns dois meses, no lançamento dos Jogos Mundiais dos Povos Indígenas, a presidente Dilma Rousseff saudou a mandioca como uma das relevantes conquistas do Brasil. Foi alvo de inúmeras piadas. Toda essa gozação foi extremamente reveladora: revelou a ignorância, a prepotência e o espírito colonizado de seus autores.
Por que ignorância? A mandioca é, de fato, uma importante conquista desse território. Conquista que data de cerca de sete mil anos atrás, quando a planta foi domesticada. De lá para cá, centenas de variedades foram desenvolvidas pelos povos indígenas amazônicos, em um trabalho de seleção e melhoramento, com resultados equivalentes ao que é feito por cientistas e empresas agrícolas.
Por que prepotência? Como a mandioca foi domesticada pelos índios e é cultivada por esses povos e por comunidades tradicionais, tende a ser vista como um alimento de segunda categoria, não tão importante como o trigo ou o arroz. Esses, sim, seriam exemplos dignos das conquistas da nossa espécie. Ou seja, aqueles que fizeram piada com a declaração da presidente valorizam o que a “ciência” e a “tecnologia” fazem, mas não estão dispostos a reconhecer o valor do conhecimento tradicional dos povos indígenas.
E por que espírito colonizado? Porque o que vem daqui, o que é desenvolvido por nós ou por povos indígenas que vivem ou viveram nesse território não merece reconhecimento. Nem a mandioca, nem a cultura e a língua dos índios, nem a nossa biodiversidade, nem nada. Quantos por aqui sabem que nesse país se falam quase 200 línguas? Quantos dão valor a essas culturas? Mas quantos acham interessantíssimo que na Espanha se fala basco e catalão, além do espanhol?
Apesar desses elementos estarem presentes no nosso cotidiano com muita frequência, talvez o melhor lugar para apreciá-los seja a discussão da nova lei de acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicional a ele associado, a chamada Lei da Biodiversidade (nº 13.123/2015). Depois da desastrosa tramitação e aprovação, acontecem agora os debates sobre sua regulamentação – e eles têm sido reveladores. A facilidade com que o setor empresarial, principal usuário do patrimônio genético, concorda em criar dispositivos para proteger, rastrear e remunerar os conhecimentos tradicionais que serão, teoricamente, acessados pode surpreender os desavisados. A verdade é que isso acontece porque a maior conquista, o que realmente faz diferença para eles, já está na lei e não pode mais ser modificado: trata-se da separação total entre patrimônio genético e conhecimento tradicional.
A nova lei separou completamente o conhecimento tradicional do patrimônio genético, estabelecendo dois sistemas diferentes de acesso e de repartição de benefícios. Assim, o acesso ao patrimônio genético, independente de onde é feito, não precisa de consentimento prévio informado de ninguém e a repartição de benefícios é sempre feita com a União. O acesso ao conhecimento tradicional segue outros trâmites, que incluem a obrigação de consentimento prévio informado e de um acordo de repartição de benefícios 

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