O MERGULHO
Há muitos sons nos ouvidos. Em especial, aquele vindo das membranas dos esqueletos. São desavisados e penetram nos glóbulos sanguíneos para implantar a angústia.
Difíceis de serem localizados, pois como em um passo de mágica, movem-se aleatoriamente, para cima e para baixo, ecos soltos entre cordilheiras de largas paredes de pedra marcando o compasso do tempo.
Ocasionalmente, doada a liberdade de nascer, inéditos barulhos são jogados ao nosso redor, servem de consolo. É o começo invisível dos sinais que ficarão para sempre, como a marca a fogo feita no couro do gado.
Não se sabe antecipadamente, o número dos sapatos que serão incinerados ou queimados melancolicamente, pela morte.
Um lindo menino sorri e pula da ponte do canal de esmeraldas, no mar calmo. Gesticula os braços como se fosse uma orquestra. São movimentos moderados, alegres, vibrantes, aparentemente ensaiados, juntos às vozes das águas que sobem descompassadas ao céu e caem como notas musicais.
Sentado em um dos extremos da ponte, o velho acompanha atento, com sua vista cansada, o banho da juventude, procurando reviver aquela certeza de que, sob sua pele, enrugados beijos de amor foram doados. A força visiva dos seus olhos mexe com os espasmos colhidos através da espera; a mesma que fez as árvores florescerem e os frutos caírem na terra e germinaram.
Seu corpo frágil contrasta com a energia e o malabarismo da criança, ao mesmo tempo em que o inspira a pescar recordações. As mãos seguram uma bengala para deixá-lo plantado no chão, uma batuta aposentada, fincada no solo, persistente, escrava do seu dono que, durante anos, doou a serena jovialidade dos deuses pagãos colocada a sua disposição e aos profundos mistérios da sua emoção .
Mergulha com o menino no imaginário, diante da alegria, e vê claramente, no fundo do canal, madrepérolas brilharem de baixo para cima, subtraindo o olhar, a esperança.
Uma brisa momentânea o faz respirar mais forte, enche os pulmões com a existência. Volta a si a imagem substitutiva que estava diante dele. Não mais existe o herói .
As rugas da sua boca desaparecem com um largo sorriso de abstinência e compreensão de ter tido a chance de mergulhar por anos e séculos.
Harmonicamente, reassume seu dever inclinando a cabeça para trás da nuca , olhando para o alto nas múltiplas direções dos pontos cardeais.
"ENTRELINHAS LITERÁRIAS", SÃO PAULO, BRASI, 2011
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