sexta-feira, 21 de outubro de 2011

CRAZY HORSE

Após filmar o balé de Paris e uma academia de boxe nos Estados Unidos, Crazy Horse (2011) é a terceira vez seguida em que o documentarista Frederick Wiseman se aventura pelas imagens de corpos, de treinos e de preparação física. Existe entretanto uma grande diferença entre o cabaré parisiense e as duas instituições anteriores: enquanto estas eram baseadas numa rotina de coreografias precisas e repetidas, Crazy Horse mergulha a câmera num verdadeiro caos “artístico”.
Isso porque o balé é baseado numa disciplina determinada, em movimentos conhecidos dentro de uma certa paleta. O mesmo vale para o boxe e sua coleção limitada de golpes e saltos. De certo modo, o diretor sabia onde poderia encontrar seus movimentos, e posicionava a câmera no ponto esperado. No entanto, no caso do “maior cabaré de nus do mundo”, como o Crazy Horse se autointitula, Wiseman fica visivelmente perdido: nada é preciso, o próprio local quer renovar suas apresentações, a noção de criação e de performance é diretamente confrontada ao caráter volúvel dos artistas presentes.
Em outras palavras, enquanto o balé e o boxe apareciam como “categorias profissionais” muito bem definidas, com rotinas e gestões enquadradas, a dança de nus pode ser determinada de diversas maneiras. O documentário flagra a época em que um grande coreógrafo, histriônico e arrogante como poucos, assume a direção de um novo espetáculo, Désirs (“Desejos”). É deste homem que vêm a maioria das pérolas desta “profissão artística”, ideia eternamente vaga entre os sociólogos, principalmente porque a maioria dos artistas recusa a perceber seu trabalho como uma profissão qualquer. “Desculpem, mais eu não posso ser genial todas as manhãs, eu dependo da inspiração”, ele diz, ou ainda “Eu atraso mesmo, não se pode impor uma data à criação, o que estamos fazendo aqui é arte!”.
Ou seja, a arte pode vir e voltar, aparecer e sumir, estando sempre submetida às sensações e à boa vontade do coreógrafo. Apesar de seu evidente conhecimento técnico de dança, seus julgamentos e escolhas parecem todos baseados na emoção, na percepção não justificada: “Acho que ainda falta alguma coisa”, “Talvez a luz azul traga algo a mais a este número”. Diante da incapacidade de contestar (afinal, como se argumentar logicamente com quem não usa a lógica?), as meninas obedecem, e os produtores empurram a data do lançamento, preocupados entretanto em tornar o espetáculo o mais rentável possível.
Enquanto Wiseman filma centenas de seios, bundas, contorcionismos, sombras e reflexos de toda a natureza, o espetáculo vai se criando, tentando conceder às sensibilidades de todos os envolvidos. O mais interessante é ver o tal coreógrafo protestar quando descobre que os técnicos do local não possuem hierarquia entre eles, trabalhando de modo comunitário. “Mas se algo dá errado, a quem eu posso reclamar?”, ele protesta. Esta é uma das cenas mais clássicas no que se diz respeito à ideia de profissão, de hierarquia e de poder envolvida no trabalho artístico.
Wiseman filma as disputas de poder com o mesmo fascínio que mostra as curvas femininas, enquanto o tal desejo se torna cada vez mais distante quando dissecado desta maneira, revelando cada peça de seu mecanismo interno, sem fetiche nem idealização. Muitos críticos reclamaram que Crazy Horse é um filme muito menos preciso do que os antecedentes – em especial a toda-poderosa Cahiers du Cinéma. Talvez isso represente a surpresa real deste diretor, metódico e tranquilo, diante do caos de egos imensos, luzes, seios, brilhantes, sexos, de um excesso muito kitsch e que se leva a sério até demais.

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